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A Covid mudou o mundo, exige-se solidariedade

Falemos sobre uma crise em que não há desculpas nem responsabilidades inventadas, ninguém pode apontar o dedo aos preguiçosos do sul, às mulheres ou ao vinho, ninguém acredita que o vírus é um castigo divino e merecido porque vivemos acima das nossas possibilidades.

Falemos sobre a crise. Não sobre outra crise qualquer, falemos sobre esta crise, a primeira no tempo das nossas vidas a ser provocada por uma pandemia mundial que levou ao confinamento forçado de milhões de pessoas e à suspensão obrigatória de atividades económicas, algumas por tempo indeterminado.

Falemos sobre uma crise em que não há desculpas nem responsabilidades inventadas, ninguém pode apontar o dedo aos preguiçosos do sul, às mulheres ou ao vinho, ninguém acredita que o vírus é um castigo divino e merecido porque vivemos acima das nossas possibilidades.

Falemos sobre uma crise em que os serviços públicos, o Serviço Nacional de Saúde à cabeça, foram testados muito além dos limites de uma normalidade de investimento que nunca existiu, e a destruição de emprego não tem precedentes em rapidez e intensidade.

Falemos sobre uma tempestade, imprevista, violenta e devastadora, e de como não nos podemos fazer ao mar em botes de borracha. Falemos sobre o que é obrigatório e o que é irresponsável num orçamento discutido e aprovado no auge desta crise. Falemos da diferença entre este e todos os outros orçamentos.

O Orçamento do Estado para 2021 não pode apresentar como inovações sociais medidas que não passam de fantasmas das promessas passadas. A construção dos hospitais do Seixal e de Évora, a contratação de 4200 profissionais para o SNS, o novo programa de saúde mental são conquistas dos orçamentos passados, negociadas e aprovadas muito antes da covid-19 ser sequer um pesadelo e que continuam por cumprir. Por causa disso, Portugal perdeu médicos durante este período e a pandemia já levava 7 meses de avanço quando o Governo decidiu efetivar 2995 profissionais.

O investimento no SNS é o caso mais gritante mas não é exclusivo no rol de medidas recauchutadas para 2021. Na educação, o Governo volta a anunciar como grande medida a contratação de assistentes operacionais para satisfazer uma revisão de portaria de rácios que foi proposta pela Bloco e aprovada no orçamento para 2020. Na verdade, o OE 2021 não só não acrescenta, como diminui a despesa em recursos humanos em educação.

Outro exemplo, a descida do IVA da eletricidade, que o Governo fez depender de uma resposta da Comissão Europeia e teve a aprovação desta em junho passado, está agora prometida para dezembro e só deve chegar em janeiro.

O Orçamento para 2021 não pode esconder-se atrás da “bazuca europeia”. O acesso ao fundo de recuperação não depende do OE e certamente não desresponsabiliza o Governo de ir além do simbolismo na política de proteção dos rendimentos. O anúncio da alteração das tabelas de retenção na fonte de IRS está muito mais próximo do truque dos duodécimos de Passos Coelho do que de uma política de combate à crise.

O apoio social que o Bloco de Esquerda negociou com o Governo foi descaracterizado, de permanente passou a extraordinário, tem uma duração de 6 meses e uma condição de recursos que exclui muitas famílias que perderam rendimentos. O aumento do salário mínimo não esconde a pobreza entre quem trabalha nem a estagnação da nossa economia em salários baixos.

O Orçamento para 2021 tem de garantir que a crise é temporária. Como disse António Costa, “a pandemia mostrou o preço que pagamos pela excessiva desregulação do mercado de trabalho”. A par do vírus, o desemprego é o maior perigo para o país e para a economia, o mecanismo através do qual uma crise que podia ser transitória se transforma em definitiva, aquilo que estrangula o consumo e leva a falências em massa, a vaga que tem de ser travada a todo o custo.

O mundo mudou, realismo exige-se. A proteção do emprego, dos salários, dos apoios sociais e dos serviços públicos é a única saída para não deixar ninguém para trás, para não acrescentar crise à crise. O Orçamento para 2021 não pode negar tudo isto e continuar a drenar dinheiro para o sorvedouro do Lone Star e do Novo Banco. As medidas que o Bloco de Esquerda levou à mesa das negociações desde julho continuam lá. Não há razões para falhar ao país agora.

Artigo publicado no jornal “I” a 15 de outubro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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