Confiar no desconfinamento

porMiguel Guedes

05 de maio 2020 - 11:35
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Acredito que tenha havido transmissão em direto na SportTV. O plano de desconfinamento da Covid-19, anunciado por António Costa, acelerou o passo, encontrou espaço para reunir os presidentes dos "três grandes", esqueceu todos os outros e avançou para o simulacro de normalidade que se avizinha.

A partir de agora, é oficial: fomos bem-sucedidos neste esforço colectivo de sermos os donos desta contenção. Os números animadores, na proporção dos dias em passagem, não mentem. Houve muitos golos com confirmação de VAR.

Será incompreensível se o futebol reabrir sem que se criem todas as condições para cumprir as 10 jornadas que faltam

Agora que parte do Mundo vai reabrir após o esforço olímpico (sobretudo de médicos, enfermeiros e técnicos de saúde) dos que trabalharam incessantemente - enquanto grande parte de nós, entregues ao novo ritmo do teletrabalho, cumpríamos a emergência em ordens entre o sofá, computador e o telefone mais à mão -, lembremos aqueles que passaram toda a quarentena e emergência forjada em planos de desespero por anteverem um futuro próximo mutilado ou inexistente. Não sei se estes fora de jogo fazem da mágoa desporto, se dão em directo em televisão alguma, se são bolas fora ou cartas fora do baralho. A única certeza é que a Primeira Liga de futebol vai recomeçar no último fim de semana de Maio e é preciso, em nome dos que sofreram sem ele, confiar nas linhas. A única certeza no desporto-rei é que esta orientação tem que ter um fim.

"Desconfiamento", palavra amálgama entre desconfinamento e desconfiança. As modalidades "indoor" avançaram, incompreensivelmente, para o encerramento da época sem atribuição dos títulos de campeão nacional aos que lideravam os campeonatos com o mérito desportivo até à data. Que belo estímulo para os praticantes. Nada artístico. Em janeiro, 20 jogadores do plantel do V. Setúbal adoeceram com febre ao mesmo tempo. Nesse mesmo mês, semelhante surto aconteceu no Inter de Milão, onde 23 dos 25 jogadores adoeceram subitamente. Testes serológicos, asap. Ninguém nos explicou ou quis explicar. Não há mérito algum em fazer de conta que a realidade não nos conta sobre os factos.

Miguel Guedes
Miguel Guedes

Agora não estamos a falar de Arte

12 de abril 2020

Será incompreensível se o futebol reabrir sem que se criem todas as condições para cumprir as 10 jornadas que faltam. Se assim não for, mais decente seria acabar tudo como está. Por uma vez, exige-se ao futebol, como a qualquer área de retoma, um exercício claro de confiança. Longe vão os tempos (apenas há um mês e meio...) em que puristas defendiam que o futebol sem público era crime que dava empate perpétuo. Agora, após umas semanas sem mão na bola, já vemos treinos televisionados dos suecos do Hammarby, deliciados com um golo do seu mágico Zlatan, ego furtivo do AC Milan assim que a época termine. Se recomeça que seja um novo começo. Num jogo que se jogará em estádios sem adeptos e com risco acrescido para todos os intervenientes, têm que ser criadas todas as condições de sustentabilidade para que o campeonato não tenha que parar devido à doença da conveniência dos resultados de alguns.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 1 de Maio de 2020

Miguel Guedes
Sobre o/a autor(a)

Miguel Guedes

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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