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Comunidade local – política, democracia e inclusão

A democracia não se esgota no modelo da democracia representativa, que apesar da intervenção periódica dos cidadãos está longe de ser plena e satisfatória.

O conceito de comunidade assenta na existência de uma população, residente num território, com laços de vizinhança ou de pertença e que se organiza – ou é organizada - com vista a encontrar soluções para de tratar de problemas comuns e satisfazer necessidades colectivas.

Muitas vezes somos tentados a identificar a comunidade como o Estado, mas vai muito para além e para baixo - numa hierarquia muito discutível – disso. Desde sempre, e antes do surgimento do Estado, que as comunidades se foram organizando, de forma natural, como resposta à necessidade de socialização, fosse para o culto dos mortos ou para a organização da actividade económica.

Como bem se percebe, essa organização começou a uma escala local alargando-se progressivamente por diversos factores de agregação de comunidades locais, fossem elas a identidade étnica, linguística, religiosa, cultural ou a simples dominação pela força das armas ou do dinheiro.

O que é certo é que as relações mais puras de vizinhança se mantiveram, com mutações do estrato populacional e eventualmente territorial, criando sentimentos de identidade e de pertença. Ora, estes sentimentos são fulcrais na afirmação e expressão da democracia local, que tem, necessariamente, de ser acompanhada por uma autonomia inequívoca das comunidades locais. Mas de nada serve uma ampla autonomia local se a mesma não for exclusivamente tributária da democracia local. Aliás, se houve manifestação do Princípio Democrático na Idade Média e na Idade Moderna, ela verificou-se nas comunidades locais, fosse nas comunas francesas, nos concelhos ibéricos ou nas paróquias portuguesas.

Tudo isto vem a propósito da necessidade de afirmar a democracia, nas suas diversas vertentes, nos programas eleitorais que sustentarão as listas apresentadas a sufrágio nas eleições autárquicas que se avizinham. A democracia não se esgota no modelo da democracia representativa, que apesar da intervenção periódica dos cidadãos está longe de ser plena e satisfatória e que numa interpretação simplista resulta num mandato livre, irrevogável e periódico.

A democracia, sobretudo à escala das comunidades locais, tem de se fundar também noutras dimensões: a democracia directa, sempre admitindo a chamada às urnas para a resolução de questões particulares, a democracia participativa, convidando à participação de interessados, com as suas sugestões, no desenho das políticas locais e a democracia deliberativa, que pelos seus mecanismos processuais torna pública a discussão e as opções consideradas no debate.

Há pois que criar condições para essa plenitude e pluridimensionalidade democrática, desde logo à escala local, fazendo toda a diferença os programas e os compromissos eleitorais. Desta forma se permitirá uma melhor ponderação da vontade da comunidade local.

Neste momento deve também ter-se em consideração a diversidade das nossas comunidades locais, em especial nos grandes centros urbanos, pois a condição de cidadania plena não esgota o substrato pessoal de uma comunidade local, em especial pela presença na comunidade de elementos que, tendo connosco relações de vizinhança e problemas comuns, não têm um estatuto pleno de pertença à comunidade local por estarem privados da capacidade eleitoral passiva e/ou activa em função da sua nacionalidade. Também estes membros das nossas comunidades devem ser alvo de especial atenção, devendo os mecanismos da democracia participativa e deliberativa, à falta da revisão legal dos conceitos de capacidade eleitoral, ser especialmente trabalhados assumindo condições de intervenção de quem compõe esta parte substancial das nossas comunidades locais.

O Bloco de Esquerda, nos diversos órgãos autárquicos em que tem obtido representação, leva a sério a democracia local, numa visão plena da mesma: seja pela defesa da realização de referendos locais, seja pela exigência de debates e discussões públicas que vão para além da composição restrita dos órgãos das autarquias locais, seja pela exigência de mecanismos de divulgação da informação da actividade dos órgãos das autarquias locais.

Assim se demonstra que o voto no Bloco – e parece tratar-se mesmo do único voto nestas condições - não faz jus à velha máxima anarquista: “Se o voto é a arma do Povo, então não votes que ficas desarmado”. Sim, há quem faça e queira fazer diferente. E sim, há quem seja democrata ao ponto de entender que o seu mandato não é e não pode ser suficiente a uma democracia local plena e inclusiva.

Sobre o/a autor(a)

Advogado, ex-vereador a deputado municipal em S. Pedro do Sul, mandatário da candidatura e candidato do Bloco de Esquerda à Assembleia Municipal de Lisboa nas autárquicas 2017. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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