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A comunidade cigana: mais um alvo fácil de Sarkozy

A pessoa cigana é hoje o estrangeiro (mesmo sendo cidadão nacional), o pobre, o sem voz, sem poder.

C'est la guerre!”, “Nous serons intraitables”, “Il n'y aura plus d'excuses”, “Nous allons éradiquer”, “J'ai donné l'ordre de...”, “Une nouvelle loi sera votée bientôt”, …
(“É a guerra!”, “Seremos intratáveis”, “Não haverá mais desculpas”, “Iremos erradicar”, “Uma nova lei será votada rapidamente”)

Nicolas Sarkozy

O discurso de 30 de Julho, em Grenoble, de Nicolas Sarkozy começou pela criminalidade violenta, para passar à imigração e aos Roms, ordenar o desmantelamento dos campos da comunidade cigana (ou Rom) e as expulsões colectivas e anunciar novo projecto de retirada de nacionalidade a cidadãos estrangeiros que tenham praticado determinados crimes… juntou tudo numa amálgama do pior que há e, a partir daí, triunfantemente atirar com afirmações de força, ordem, e compostura num discurso securitário com alvos fáceis.

Mostrar a imagem do homem de pulso forte, com rédea curta, pretende manipular e conquistar facilmente um povo (48 a 69%, dependendo das sondagens1, apoia estas decisões) que se sente inseguro, mas inseguro por tudo e mais alguma coisa… sobretudo inseguro devido ao desemprego, precariedade que avança em vários sectores da vida, inseguro perante um projecto europeu que dá mostras de fraqueza, perante uma política e gestão medíocres, uma comunicação social incendiária, etc.

Nicolas Sarkozy está a fazer uma jogada populista, aprazível a sectores populares e à extrema-direita de Le Pen (Front National), que lhe valeram dois pontos percentuais, de 34% para 36%2, uma subida afinal ligeira na sua popularidade, pois continua nos valores mais baixos desde 2007, o que provoca preocupações à sua recandidatura.

Assim pretende, também, afastar as atenções do seu plano de austeridade e aumento da idade da reforma.

A postura de força e ordem associadas à xenofobia sempre foram utilizadas, de forma vergonhosa, nesta Europa, em épocas de crise e decadência, normalmente visando um bode expiatório; agora um dos seus elos mais fracos: a comunidade cigana.

Mas no fundo, esta atitude toda, solene e dramática, não revela mais do que a incapacidade de Sarkozy de fazer alguma coisa com seriedade. A comunidade Rom continuará a vir para França e para outros países, a ser expulsa, a fugir de uma realidade onde não tem trabalho ou onde trabalha 30 dias por mês, 12 horas por dia, a ganhar 150 euros por mês3, num país onde não tem acesso a políticas sociais. É um ciclo que se eterniza ...e que só pode aumentar perigosamente o racismo e a estigmatização originando acções violentas em vários sectores da sociedade, sobre um povo já muito maltratado.

Para fazer algo com seriedade era necessário agir de forma mais profunda. Era necessário ser verdadeiro, era necessário que os responsáveis políticos em exercício em França, mas também em todos os Estados da União Europeia, na Itália, Alemanha, Dinamarca e Suécia (países onde também tem havido expulsões do género) fizessem aquilo para que são eleitos: se preocupassem e procurassem cuidar de todas e todos os que habitam o seu território, ir às causas dos problemas, ao contexto, falar com os actores diversos, produzir políticas sociais e de educação, habitação, integração social e política, neste caso, de um grupo culturalmente distinto.

Mas não é nada disso que o Sr. Sarkozy quer. É que assim lhe faltaria a desculpa, o oportunismo, para utilizar este grupo para fazer mais um dos seus números.

As pessoas da comunidade cigana integram a maior minoria étnica europeia (cerca de 10 milhões) que já sofreu muitos atropelos graves; opressão esta que é ignorada pela história. Quem sabe a história deste povo? quem fala no genocídio por Hitler, quem fala na escravatura a que foram (e são) sujeitos em várias partes da Europa, quem fala nas consecutivas perseguições, prisões em massa, expulsões, assimilações forçadas e violentas, deportações e assassinatos que, durante séculos, foram sofrendo por esta Europa fora4?… até hoje…

Ruy Duarte de Carvalho5 referia-se aos problemas que as comunidades nómadas do mundo sempre tiveram junto das comunidades sedentárias: “por todo o mundo e desde a bíblia estigmatizam todas aquelas sociedades que fundamentam na mobilidade as suas estratégias de vida (…) há aspectos económicos, ideológicos e técnicos que traduzem os termos do conflito entre os nómadas e os sedentários de hoje. Há ainda na actualidade muitos milhões de seres humanos que extraem da sua mobilidade e dos seus recursos vivos e móveis as razões e dinâmicas da sua vida económica e cultural (…) são unanimemente acusados de independentes, pouco controláveis, pouco dóceis, pouco respeitadores das autoridades, turbulentos, bandidos, preguiçosos, avessos aos trabalhos agrícolas ou assalariados, avessos à escolarização, vítimas de arcaísmo cultural, de estagnação e de imobilismo” (Vou Lá Visitar Pastores, 1999, Cotovia, p. 25 e 26). No fundo, numa sociedade sedentária que assenta na propriedade privada, as comunidades nómadas geram uma grande contradição, serão a maior aberração e enquanto não forem completamente sedentarizadas, e domesticadas, serão tudo do pior que há.

A pessoa cigana é hoje o estrangeiro (mesmo sendo cidadão nacional), o pobre, o sem voz, sem poder, sem qualquer participação nas estruturas de poder, sem educação, completamente alienado de política social de integração adequadas. É este elo (juntamente com os imigrantes) que fornece a oportunidade ao Sr. Sarkozy para fazer o seu número de defensor da pátria, ameaçando, avisando, exigindo e ordenando… mas no fundo não fazendo mais do que, de forma vergonhosa, expulsar cidadãos europeus, que não praticaram sequer qualquer crime (apenas o de serem extremamente pobres), de forma colectiva e ilegal, com base numa mesma família étnica, fretando aviões e ignorando tratados e directivas. Mesmo que o seu executivo recorra a justificações legais – que nos dizem que a livre circulação nunca será para os pobres – como a obrigação de apresentação de meios de subsistência para permanecer em território francês e a obrigação de os cidadãos da Bulgária e da Roménia só poderem entrar em “território europeu” com contracto de trabalho até 2013, o que é certo é que as pessoas da comunidade Rom não estão a ser tratadas como indivíduos mas como massa homogénea, associadas ao crime, e expulsas ilegalmente, porque de forma colectiva.

A Comissão Europeia, mostra mais uma vez o seu cinismo estrutural, assiste e não se pronuncia, quanto muito algumas declarações tímidas, que dão todo o espaço à continuação da limpeza étnica.

A atitude da esquerda tem de ser uma atitude responsável, aquela que não promove a violência e a estigmatização; de oposição a esta associação entre crime e minorias étnicas ou grupos sociais; a defesa da dignidade inalienável de cada ser humano; sempre a preferência pelas políticas sociais e de integração da diversidade, por mais complexas que sejam, do que o discurso repressivo e securitário fácil; a resposta da esquerda tem de passar pela compreensão, defesa, respeito e integração da diferença e dos grupos culturais minoritários; a resposta da esquerda tem de ser de solidariedade e não de expulsão.


4 Ver Conselho da Europa – um dos organismos que tem feito bastante pelo resgate da história (apagada) do povo cigano.

5 Antropólogo, escritor, cineasta e artista plástico, 1941-2010

Sobre o/a autor(a)

Investigadora e ativista na Associação Habita
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