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Como “vai ficar tudo bem”?

Ao lado do número de mortos com o novo coronavírus deveria vir a quantidade de pessoas que vivem já hoje em condições de grande precariedade por causa do novo coronavírus, gente no limiar da pobreza ou mesmo na miséria.

Ao lado do número de mortos deveria vir o número de pessoas com contratos de arrendamento que têm o seu término no final do presente ano na área metropolitana de Lisboa que estão a ser pressionadas a procurar casa numa fase em que é quase impraticável uma mudança, a quantidade de não renovações de contratos, ou aumentos de renda que agora estão suspensos mas produzem o seu efeito no fim da crise que afinal não terá fim tão cedo porque essas mesmas pessoas foram obrigadas a ficar em casa ou a cancelar entre 20%, 30%, 50% ou mesmo 100% do seu trabalho (como sucede no sector cultural, nos não falsos recibos verde, por aí fora).

Cerca de quatro mil pessoas por dia têm-se inscrito no Centro de Emprego, são gente em busca do fundo de desemprego.

A (ainda) chamada classe média adiou os pagamentos à Segurança Social, às Finanças, à EDP, à EPAL e por aí fora. Esta opção produzirá uma factura pesada, terá um estrondo enormíssimo daqui a um ano quando percebermos (há quem ainda não o tenha apreendido) que a “normalidade” é uma “nova normalidade”, muito distinta da normalidade antes do vírus, é uma normalidade condicionada pela incerteza da anormalidade que concentra.

Não, não “vamos ficar todos bem”, quando a grande maioria das pessoas não estará imune a contrair a doença, por muitos cuidados que tenha, antes da vacina. Não, não “vamos ficar todos bem” quando muitas das infectadas pertencem às franjas mais vulneráveis socialmente e economicamente: pessoas do sector da limpeza, da protecção ou mesmo da construção civil, que continua a funcionar em muitas zonas históricas de Lisboa sem quaisquer constrangimentos no que diz respeito à protecção destes trabalhadores (máscaras, luvas) e ao seu distanciamento social.

Não não “vamos ficar todos bem”, quando o medo, os transtornos psicológicos, a entropia social e financeira empurrarão pobres e classe média, sem alternativa, para a morte.

 

É insustentável a situação, o pânico é geral, é sobre isto que aqui descrevo que deveria recair JÁ a atenção sobre as medidas que têm vindo a ser implementadas pelo governo português. Não entendo a ufania em torno das medidas, acho imprudente quando o embate é catastrófico.

Não creio que a doença seja, como também oiço dizer, de natureza democrática por atingir todos os grupos sociais, etários, geográficos ou culturais. Ela produz efeitos antidemocráticos, desde logo porque ficar em casa para os grupos de população que descrevi, que vivem do seu trabalho a recibos verdes ou com contratos de trabalho de curta duração, não tem o mesmo significado nem produz os mesmos efeitos que as que ficam em casa habituadas a viver da exploração das primeiras.

Não não vai estar tudo bem, quando as mesmas pessoas que vos pedem para ficar em casa, são aquelas que vos mandam trabalhar nas obras do hostel que tem que ficar pronto no fim do ano, ainda na esperança que afinal isto venha a melhorar para eles que vos dizem “vai ficar tudo bem”, vos aumentam a renda ou vos pedem mais horas extraordinárias em teletrabalho ganhando metade dos vossos ordenados e sem saberem muito bem se será para continuar.

O que a crise sanitária e o tecido económico em queda livre e abrupta vos podem dizer neste momento é simplesmente que as pessoas que vos dizem que “vai ficar tudo bem” são as mesmas que sempre viveram alienadas dos mais elementares valores humanos e sociais.

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