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Como os programas televisivos podem contribuir para a luta política

Em tempo de Covid19, a sucessão de noticiários torna-se pesada e deprimente. Infelizmente, é o dia-a-dia, convém ver e ouvir. Mas podemos sempre fazer um exercício de desmontagem a partir do que é dito ou a partir dos silêncios.

Ficam muitas perguntas no ar, colocam-se questões para a luta política post-Covid19.

O tópico “lares” e o tópico lay-off são inesgotáveis e a forma como são abordados pelo Governo, concretamente pelo Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, determina a relação connosco, seja pelo diálogo seja pela luta. Exemplifico recorrendo ao Expresso da Meia Noite (SIC Noticias, Sexta-feira, 1 de Maio). Para além dos jornalistas da SIC (Bernardo Ferrão) e do Expresso (Ângela Ferreira), o painel convidado era composto pelo Secretário de Estado da Segurança Social (Gabriel Bastos), pelo Presidente da União das Misericórdias Portuguesas (Manuel Lemos), pelo Presidente do Aliança (Pedro Santana Lopes) e pela Presidente do Banco Alimentar de Lisboa (Isabel Jonet). Estranhei este painel mas era o que ofereciam. Os jornalistas estiveram assertivos, baralharam o Secretário de Estado que não acrescentou uma palavra para projectar um novo horizonte sobre o problema dos lares ou para a questão dos escandalosos atrasos no pagamento aos trabalhadores em lay-off. Nadica de nada, parecia incomodado e claramente sem preparação para ser bombardeado por questões várias, em simultâneo e cruzadas. Alguém vai ter de explicar ao Sr. Secretário de Estado que em tempo de guerra não se limpam armas. Ou seja, os trabalhadores em lay-off não podem esperar para comer ou pagar as contas. Ripostou que o Ministério não estava à espera desta avalancha de pedidos o não constituirá novidade para ninguém mas o Ministério deveria ter tido a eficácia e ductilidade para resolver o problema. Rebenta com o sistema de qualquer um ouvir um governante responder com aquela calma e pausas a uma questão tão vital como esta: pagar o que o próprio Estado determinou. Se fossem os funcionários do Ministério nesta situação dramática, como reagiriam? A máquina MTSS não funciona, não está oleada para o Portugal de 2020. Aquela máquina empederniu no antigo regime e por lá ficou, a modernização é-lhe estranha. Tenho cá para mim que aquela estrutura é, na administração pública portuguesa, o melhor protótipo da administração que recusamos. Nada abala as repartições, os guichets, os gabinetes. O horário certinho, o vencimento ainda mais certinho, chovam pedras e coriscos, haja que urgência houver. Agora é o lay-off mas antes tinham sido as pensões com mais de um ano em atraso, os pensionistas a viverem sabe-se lá de quê, e o Ministério como respondeu?! Pelo meio, subsídios vários atrasados, como se estes incumprimentos fossem mera nuvem passageira que logo logo chega o sol.

Do outro lado da mesa, estava Santana Lopes um pouco fora dele. Bracejava enquanto enumerava o que o governo devia ter feito a começar pelo recrutamento de pessoal noutros ministérios para tratar da papelada que o lay-off exige. Sobre os lares, quando finalmente passou a palavra, apontava teatralmente para os outros participantes que o público deixara de ver, incentivando-os a intervir. Nada, absolutamente nada a não ser um bocadinho de campanha pelo Aliança, como que a dizer existo. O Aliança, moribundo está e permanece, não ganhou rigorosamente nada com aquela participação.

Depois o Sr. Presidente da União das Misericórdias Portuguesas. Aqui, a coisa fiou mais fino. Primeiro, pelo total desrespeito pelas regras de participação. Bem podia o jornalista tentar tirar-lhe a palavra. Inútil, o Sr. Presidente UMP’s estava decidido a repor a verdade. E qual era a verdade? É que a UMP’s gere mais de 730 estruturas de apoio social (deduzo que lares e outras) a servir qualquer coisa como 35 mil utentes e apenas registaram 120 óbitos com o Covid19. Portanto, concluía ele, os media não têm relatado com exactidão a situação. Estes números, digo eu, serão verdadeiros mas o interessante não são estes números; o interessante, é onde estes números nos podem levar. Sigamos outros números que os media têm vindo a revelar. Por exemplo, se os portugueses institucionalizados são cerca de 100 mil, onde estão os outros 65 mil?! Devem estar a cargo de IPSS (Instituições Particulares de Solidariedade Social). Ora sendo, as IPSS à face da lei, legais, quer dizer que ainda temos os 35 mil utentes de estruturas ilegais como a Sra. Ministra do TSSS admitia há uns dias. Como estão estes utentes? Que informação é que temos sobre eles? Quem responde por esta situação? Portanto, bendita aritmética, serão cerca de 135 mil portugueses institucionalizados embora o Expresso (02.05.2020) suba a fasquia para 150 mil idosos, fechados e esquecidos. Ainda não se conseguiu perceber se a referência dos 40% de óbitos entre a população dos lares é para 100 mil (em estruturas legalizadas) ou para 135 mil (em estruturas legalizadas+ilegais). Julgo que os 40% devem referir-se ao universo dos 135 mil institucionalizados porque, como repete amiúde a Direcção-Geral da Saúde, nenhum enterro pode ter lugar sem a certidão de óbito passada pela autoridade competente o que inviabiliza qualquer outro número. E 40% é uma percentagem muito elevada reflectindo exactamente a estatística publicada pela PORDATA (consulta em 04.05.2020) afirmando que “Portugal tem mantido o valor mais alto de óbitos por milhão de habitantes no grupo dos que têm índice de envelhecimento mais elevado”.

Mas na sua intervenção, o Sr. Presidente da UMP’s revelou que a lei obriga à existência de 1 enfermeiro por 40 utentes. Ora, em vários dos lares referidos no tour que todas as noites a televisão nos disponibiliza por esse país fora, a percentagem não é essa, significando que se, em tempos de paz 1/40 é trabalho que nunca mais acaba, em tempo de Covid19, é a exaustão oferecida de bandeja. Este é outro aspecto a fiscalizar com olhos mais apurados já que a fiscalização do MTSSS não tem conseguido pôr cobro aos lares ilegais como adiantou o Sr. Secretário de Estado. Depois, também a questão das comparticipações oficiais do Estado a pagar 50% das despesas. Podemos concluir que 50% é uma boa comparticipação mas tudo depende da forma como a despesa foi calculada ficando por saber como é que os utentes pagam os 50% restantes quando sabemos quão escassas são as pensões. Se a despesa foi calculada para não afugentar o comparticipante Estado, podemos estar perante uma inverdade que coloca os utentes num equilíbrio delicado, ou seja, o custo per capita pode ser baixo mas se não cobrir as reais necessidades, o utente vai sentir isso nos serviços que recebe, ou não será?

Faltava a Sra. Presidente do Banco Alimentar (Lisboa). De todas as intervenções, foi a mais concreta. Muito me surpreendi ao ouvi-la criticar a política do subsídio, do combate enganoso à fome e à pobreza. Com todas as letras, a Sra. Presidente do BA opinou, e bem no meu entender, que os subsídios não resolvem coisa nenhuma e que aquilo em que nos devíamos empenhar era em arranjar trabalho e emprego para quem o perdeu e para quem tem salários de miséria. Poderei discordar de uma ou outra expressão utilizadas mas a mensagem está lá: a política caritativa de resolver as situações distribuindo subsídios não leva a parte nenhuma. As pessoas precisam de trabalho e emprego. É urgente acabar com a pobreza e com a fome. O BA faz o seu papel, em tempo de Covid19 tem tido uma procura nunca imaginada mas esta intervenção de emergência não pode virar rotina. A requerer revisão urgente estão todo o sistema e estruturas de apoio social como os conhecemos porque a distribuição de subsídios mais não é que uma mezinha não eliminando em termos definitivos a pobreza.

Sobre o/a autor(a)

Bibliotecária aposentada. Activista do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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