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Como matar a Ciência em Portugal em três tempos

No campo da investigação científica, a estratégia do Ministério de Nuno Crato e da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) caminha num só caminho: o da ruína.

Na verdade, não lhes podemos negar competência, pois aplicam uma espécie de receita rápida que num só ano consegue condenar a um não-futuro milhares de investigadores, dezenas de centros de investigação e todo o sistema do ensino superior que sobrevive em penúria. As políticas de austeridade significam empobrecimento, as nossas vidas já o sabem, mas também significam um regresso ao Portugal dos pequeninos, em todos os sentidos. É este o plano da direita que nos governa: reduzir as funções do Estado ao mínimo, promover o elitismo e a meritocracia, entregar tudo nas mãos do capital ou aos interesses do mercado, seja a nossa saúde, a nossa educação ou o conhecimento científico. O problema é que esta visão é absolutamente cega e também perigosa, porque fascinada com o abismo.

Os três tempos da receita letal:

1. Objetivo: promover o estrangulamento financeiro das instituições do Ensino Superior.

Em dois anos, o Governo PSD-CDS reduziu em mais de 380 milhões de euros as transferências para as instituições de ensino superior. Fruto deste corte, o investimento público no sector medido em percentagem do Produto Interno Bruto (PIB) estava, em 2012, abaixo de 0,3%, uma realidade que a constante diminuição do financiamento nos anos seguintes só veio agravar. Na verdade, o valor investido nas universidades e politécnicos está em quebra desde 2010 e o Orçamento de Estado já só é responsável por cerca de metade das verbas do sector.

A regra atual é a dos cortes e da restrição financeira e o impacto destas políticas é devastador: desde 2011 houve um corte de 14% no Orçamento do Estado para a FCT e de 30% para as universidades. No último OE, a FCT sofreu um corte de 12 milhões de euros, passando o seu orçamento total para 404 milhões de euros (de 2012 para 2013, a FCT já tinha perdido 53 milhões de euros). Para completar, o orçamento de 2014 para as universidades contém um erro colossal de 30 milhões de euros que ainda não foi corrigido. Por causa desta situação, o Conselho de Reitores já cortou as relações com a tutela inúmeras vezes, demasiadas para se poder contabilizar o número…

A percentagem do PIB atribuída a despesas em Investigação e Desenvolvimento, não surpreendentemente, também não tem deixado de diminuir e apresentou em 2012 um valor equivalente ao de 2008 (dados PORDATA). Numa entrevista ao Público, em Janeiro passado, Miguel Seabra não ousou desmentir os números (1,64% do PIB em 2009, 1,5% do PIB em 2012) e esclareceu os propósitos da FCT e do Governo: “queremos é que a ciência portuguesa esteja cada vez menos dependente do Orçamento do Estado.”

Consequência: como afirma o reconhecido cientista Carlos Fiolhais, "reduzir o investimento na ciência é deitar fora a chave do futuro".

2. Objetivo: reduzir drasticamente o apoio à investigação científica e limitar a autonomia da produção científica, aproveitando para intensificar a precarização do sector.

Assim, só nos concursos de 2013 reduziram-se em 40% o número das bolsas individuais de doutoramento e pós-doutoramanto atribuídas. Estes cortes significam um retorno a valores anteriores a 1994 – pasme-se! No concurso Investigador FCT 2013,pautado por erros obscuros, injustiças e critérios pouco transparentes, os contratos atribuídos (pouco mais de 200) cobriram apenas 14% das candidaturas. Já no concurso de bolsas individuais do mesmo ano, apenas 9% dos 3.433 candidatos a bolsas de doutoramento tiveram luz verde no concurso, o mesmo acontecendo a apenas 10% dos 2.100 candidatos a bolsas de pós-doutoramento. Assim, promoveu-se um despedimento coletivo de investigadores e a desagregação de equipas e projetos de investigação, para além de se negar o apoio à formação avançada a milhares de investigadores. Como a desproteção social é a condição maioritária neste sector, esta situação traduz-se em milhares de pessoas sem apoio no desemprego e em outros tantos milhares que com a sorte de uma bolsa, ganharam a hipótese de trabalhar sem vislumbrar direitos laborais. Os concursos de bolsas deste ano ainda nem abriram e já estamos em Julho e, também por isso, não se vislumbram bons augúrios.

Consequência: na ciência, a máxima precariedade é a regra. Como indicam os resultados do Inquérito aos Investigadores promovido pela Associação de Combate à Precariedade-Precários inflexíveis: hoje, a grande maioria dos investigadores são eternos bolseiros, dificilmente têm acesso a um contrato de trabalho e perante a sua condição precária, pretendem emigrar.

3. Objetivo: promover uma política de terra queimada e liquidar centros de investigação.

Foram divulgados recentemente os resultados da primeira fase do processo de avaliação dos centros de investigação encetado pela FCT e encomendado a peso de ouro à European Science Foundation – ESF que não tarda será a Science Europe, atualmente presidida por quem também preside a nossa FCT, Miguel Seabra. Este contratou uma avaliação à distância, surda e muda, com base apenas em papéis e nos números da bibliocracia. Com a desculpa da avaliação da excelência e da produção científica dos centros, este processo visa apenas dar um tom de rigor (qual?) aos brutais cortes de financiamento destas instituições, pois o que os avaliadores externos determinam é pura e simplesmente quem vai ser financiado e quem não vai, isto é, quem fica e quem vai à vida.

De um universo de 322 unidades de investigação, a FCT condenou à morte a curto prazo 154, cerca de metade. Destas, 83 tiveram Bom (num processo de avaliação enredado em obscuridade, erros e omissões), mas têm a morte anunciada, pois terão um financiamento ridículo que não permitirá obter recursos humanos ou equipamentos. As restantes 71 tiveram Razoável ou Insuficiente - execução imediata. E não escapou ninguém… Sociologia, Filosofia, Matemática, Física, Engenharia, etc. As outras unidades – 168 - aguardam o seu destino, envoltas num limbo que não as exclui da possibilidade de ruína (se não conseguirem o financiamento extra, engrossarão o conjunto das unidades científicas condenadas a breve prazo). Com este processo, e considerando que as unidades de investigação são o principal centro de apoio à produção científica, o número de investigadores já sentenciados à morte é de 5187 num total de 15444. Os 1904 investigadores das 71 unidades liquidadas serão despedidos gradualmente nos próximos 6 anos.

Consequência: o investimento público canalizado para a investigação científica nos últimos 20 anos resulta num grande nada, promovendo-se a emigração forçada da geração mais qualificada de sempre e o fim de centros de investigação cuja história e produção científica foram motivos de desenvolvimento do país e da sua projeção internacional. Divulgo aqui a carta que o Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa escreveu à FCT, denunciando a mediocridade e a injustiça deste processo de avaliação e reclamando o reconhecimento (e financiamento) que lhe é absolutamente devido.

Estão dados os três passos que este Governo e a FCT destinaram fatalmente para a ciência portuguesa - o quarto passo já será no ar e em queda. Ou não, se antes caminharmos juntos numa sobressalto coletivo.

Sobre o/a autor(a)

Investigadora e doutoranda em Filosofia Política (CFUL), ativista, feminista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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