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Como domesticar o animal feroz

Pensar que Bolsonaro é seduzível para a convivência da CPLP é ignorar como ele se move ou que o Brasil é o seu mundo. A extrema-direita brasileira só cuidará da sua penosa sobrevivência.

Este segundo encontro do Presidente português com Bolsonaro suscitou, porventura, mais dúvidas do que opiniões, pois o crédito popular de Marcelo, recentemente reeleito, restringe os comentários sobre as suas decisões e até explica como alguma inflexão recente da sua forma de expressão e de atuação tem passado despercebida. É como se houvesse um domínio da política externa ou simplesmente da política portuguesa que ficasse incólume à controvérsia ou que fosse por definição um espaço consensual. Será péssimo se isso acontecer, tanto mais que a relação com o Brasil é demasiado séria para ser deixada só a jogos diplomáticos.

Duas visitas e um propósito

A primeira viagem do Presidente português foi à tomada de posse de Bolsonaro. Poucos chefes de Estado quiseram ficar nessa fotografia, e o rei da festa foi Netanyahu, cujos assessores tinham tido um papel destacado na gestão da campanha do “mito” nas redes sociais e cobravam a vitória. A viagem não serviu para nada e nem podia servir: o contexto de uma tomada de posse não permite nenhuma discussão detalhada. Marcelo parece ter-se limitado a querer conhecer o Presidente brasileiro, a oferecer a sua boa vontade (ao “irmão” de Brasília) e a ocupar um lugar numa grelha de partida para uma corrida que nunca começou.

Não se domestica o monstro, pode-se enfrentá-lo ou aceitá-lo e, nesse caso, ser por ele derrotado

A segunda visita teve como motivo a recente reinauguração do Museu da Língua Portuguesa. O contexto era mais complicado, o Governo brasileiro está desgastado, Bolsonaro está a grande distância do seu arquirrival, Lula, e decidiu ignorar o museu, trocando-o por uma manifestação pindérica de motards apaniguados. O protocolo perdeu-se no labirinto destas manobras, a inauguração teve a presença de dois ex-Presidentes brasileiros, um deles declarou apoio ao também presente governador do estado, João Dória, foi um comício antibolsonarista. Pior, o encontro com Lula precedeu os outros, Brasília ficou para o fim. Mesmo assim, foi notado que o último político internacional que tinha visitado Bolsonaro tinha sido um dirigente da extrema-direita alemã, neto de um ministro de Hitler. Pouca gente quer ser vista com um negacionista que tem às costas meio milhão de mortos.

Ao aceitar ser exceção, Marcelo tem um propósito: evitar o distanciamento de Bolsonaro em relação à CPLP. Que o atual Governo brasileiro ignore e menospreze a relação com Portugal é bastante evidente, mas que estas viagens possam atenuar os efeitos dessa escolha sobre a organização, isso já é duvidoso.

Pode-se domesticar o animal feroz?

O problema pode ser assim resumido: a CPLP só existirá se tiver um polo africano e outro brasileiro, além de Portugal. Limitada a encontros festivos e presa no imbróglio infindável da Guiné Equatorial, cuja adesão exprime a inutilidade política e a mesquinhez dos interesses petrolíferos a que alguns dos participantes querem reduzir a organização, a CPLP reduziu-se a uma espécie de projeção fantasmagórica das relações de um pequeno país. Se lhe falha o Brasil, falha tudo.

No entanto, pensar que Bolsonaro é seduzível para esta convivência é ignorar como ele se move ou que o Brasil é o seu mundo. Um outro Presidente talvez. A extrema-direita brasileira nunca, só cuidará da sua penosa sobrevivência. Não se domestica o monstro, pode-se enfrentá-lo ou aceitá-lo e, nesse caso, ser por ele derrotado.


Texto publicado no Expresso a 06 de agosto de 2021.

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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