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Como a ADSE pousou devagarinho, pela calada

De repente, a ADSE entrou no debate. Talvez não estivéssemos à espera mas empurraram-na para a frente, agora discutam-na. De que nos estarão a distrair?

A questão da ADSE tem, efetivamente de ser discutida mas não desta forma avulsa, como se de um berloque se tratasse. A ADSE mexe com muitos de nós e nós, os que descontaram e continuam a descontar para ela, não foram ouvidos nem há sinais que o venham a ser. A comissão nomeada por despacho ministerial para analisar a situação (e plausivelmente propor soluções) é formada por um conjunto de personalidades que nem de perto nem de longe representam o grosso da coluna dos contribuintes. Está mal e indicia o pior.

Com a proposta de alargar os benefícios da ADSE a familiares, sobretudo aos filhos até aos 30 anos, enquanto ficamos estupefactos, tiram-nos argumentos. Claro que este alargamento favorecerá de imediato as famílias (mais 200 mil beneficiários) mas os grandes interessados são os serviços de saúde privados (médicos, clínicas, hospitais) porque verão o número de utentes aumentar e o lucro disparar. Como é que vamos rebater esta decisão se, à primeira vista, ela favorece quem tem menos capacidade económica? Então, não é ótimo ir às melhores clínicas e hospitais, ter serviço de cinco estrelas e pagar os preços constantes das tabelas acordadas entre estes e o Estado? Quem é que pode negar? Dá que pensar.

Também não se percebe porquê, então, a oferta aos beneficiários de escolha entre continuar a descontar (com percentagem mensal maior) ou deixar de descontar procurando no privado o apoio inadiável. Esta é uma medida que o Governo anterior nos legou mas não foi abolida. Em que ficamos? Restringimos a abrangência da ADSE ou expandimo-la? O problema é que o privado sai sempre a ganhar e esse constitui o nó deste novelo.

Mas se agora vai a pior, então, esteve sempre mal. Dispomos da ADSE em simultâneo com o SNS. Porquê? Se entre os objetivos do SNS consta o ser universal e tendencialmente gratuito, porque se manteve a ADSE e porque se avança agora com uma proposta que a torna tão benévola? Porque deixámos este polvo crescer, alongar os seus tentáculos, estabelecer-se ao ponto de sermos levados a acreditar que a ADSE é insubstituível quando, se alguma coisa precisamos de lhe mudar, é não a deixar tornar-se imprescindível a muito mais utentes (opção, aliás, ela própria contraditória). Não parece ter lógica nenhuma e, ao olhar com mais atenção, as dúvidas acumulam-se. Introduzir esta alteração no regime da ADSE significará alimentar a desigualdade social: para um lado, os que dependem em absoluto da ADSE (para consultas, análises, exames, tratamentos, medicamentos) e para o lado oposto, os que podem prescindir desse apoio. Esta divisão não está conforme todo o esforço espelhado nas medidas anti empobrecimento incluídas no OE’16.

Admitamos que a ADSE como está, ou como se propõe que venha a estar, é uma coisa boa. O que o Estado vai perder (em compensações e pagamentos aos privados), já se percebeu. E os privados, o que ganham com isso? São precisos cálculos mas talvez não seja impossível antecipar. E não é só no imediato que ganham. Ao liquidar a capacidade dos serviços públicos servirem a população (em qualidade e em quantidade), estão criadas as condições para que estes nunca mais levantem cabeça, perdendo de vez as competências que constitucionalmente deveriam ter. Se existe disponibilidade financeira para, de uma forma redonda, compensar os privados, essa disponibilidade financeira não pode ser aplicada na melhoria das infra estruturas do SNS, em prol da saúde pública, dos serviços do Estado, de toda a população? Porque havemos de estar a franquear a porta aos privados, a escancará-la às seguradoras?

Tudo indica que alterar o regime da ADSE como se este pudesse sobreviver isolado das outras peças que nos dão alguma segurança em matéria de saúde, não vai resolver nada, vai tornar tudo ainda mais intrincado e problemático. Admitindo que a ADSE precisa de sofrer alterações, porque não olhar para todo o pacote relativo à saúde e ter a coragem de recomeçar, sobretudo reequacionando os objetivos do SNS, denunciando as verdadeiras razões desta entrada em cena de sopetão da ADSE? Reformas e reestruturações, precisam-se sim, pensadas, discutidas e planeadas.

É inaceitável um SNS cada vez mais desfalcado de recursos humanos, de competências, de equipamentos e infraestruturas. Um SNS sem qualidade, para os que menos voz têm. Abriu-se a caixa de Pandora. Como a ADSE está, nós sabemos. Como ficará, imaginamos, porque a realidade é sempre mais dura que os nossos piores cenários.

Sobre o/a autor(a)

Bibliotecária aposentada. Activista do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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