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Coletes amarelos: um acontecimento que quase aconteceu

O interesse jornalístico por estes fenómenos - é uma coisa. Outra é o que aconteceu na sexta-feira, ao longo do dia, e foi completamente disparatado e até grave.

Passa um pouco das cinco da tarde desta sexta-feira, dia 21. Em frente ao Parlamento, alguns carros de diretos das televisões esperam o vazio. “Estamos aqui desde as 11 da manhã”, desabafa um jornalista. Passaram seis horas. Os repórteres continuam no mesmo lugar, menos por vontade deles do que por ordem das chefias. Seis horas de carros de diretos parados com as suas antenas em riste. E os repórteres, parados, operadores de câmara, técnicos, tudo parado... Nada acontece. Esperam. Parece que continua a haver umas poucas dezenas de coletes amarelos no Marquês, talvez agora sejam menos que isso. E é tudo.

Chego ao Parlamento vindo de uma manifestação de trabalhadores precários em frente ao Ministério do Trabalho, que lutam contra os atrasos no reconhecimento do seu vínculo. A polícia não compareceu. Jornalistas, não havia nenhum. Uma pesquisa no Google confirma a ausência: nenhuma notícia. Esta outra manifestação, jornalisticamente, não existiu.

Depois de ter andado nos últimos dias a convocar o protesto dos coletes amarelos, o Correio da Manhã insistiu toda a manhã num direto televisivo que durou horas. O ecrã da CMTV estava dividido em quatro, com diretos de 4 pontos do país a partir dos quais Portugal ia parar. As 7 da manhã não parou, e a emissão seguiu. Não parou às 8, nem às 9, nem às 10, nem às 11... Mas o direto continuou até à hora do almoço, e a ele se voltou ao longo do dia. Perante a escassez de manifestantes, a repórter atira para a frente: “Esperam-se ainda milhares de pessoas”. Não chegaram. Mas o espetáculo continuou. Na RTP e na SIC, nos períodos em que consegui espreitar, houve diretos recorrentes durante toda a manhã, depois de nos últimos dias se terem multiplicado as reportagens e os debate sobre o significado deste protesto.

Que fique claro. Não acho que a imprensa devesse ter simplesmente ignorado um acontecimento que estava a ser objeto de atenção e de debate nas redes sociais. Nalguns casos, foi até muito importante o trabalho jornalístico dos últimos dias: permitiu identificar quem convocava as manifestações e as suas razões, revelou a participação de neonazis e de organizações de extrema-direita nos grupos criados para a manifestação, noticiou as ruturas dentro dos promotores. Mas uma coisa é dar conta de um fenómeno que ganha expressão nas redes e até preparar equipas para cobrir o que possa acontecer, que não era completamente previsível. Outra coisa é, quando se viu às 9h que o protesto não seria afinal mais que uma agremiação de poucas dezenas de pessoas, incluindo os infiltrados do PNR, escolher continuar o espetáculo mesmo quando já não havia notícia. Mesmo sem assunto e sem acontecimento. Há algum critério jornalístico que explique esta escolha? Por que razão ficaram os carros de direto à espera até ao fim da tarde? Alguém quis testar se, insistindo nos diretos, o fiasco se transformava noutra coisa?

O ponto não é que não haja muitas razões justas para sair à rua. Elas existem: a pobreza, as desigualdades escandalosas nas empresas, as vidas de merda que as pessoas têm, com o tempo que perdem nos transportes, a dificuldade em encontrar casas a preços que possam pagar, a falta de apoios para quem cuida de outros, as dificuldades dos serviços públicos, entre tantas outras coisas. Dará o jornalismo a visibilidade suficiente a esses mundos sociais, os que vivem fora dos centros, estão longe das elites, aqueles cujo quotidiano é um trabalho feito de imposições e sofrimentos? Têm esses mundos uma expressão mediática significativa fora do registo da vítima ou do escândalo?

Também é verdade que o que hoje não resultou em Portugal já resultou noutros países e pode vir a acontecer aqui - manifestações convocadas pela extrema-direita, tentando misturar verdades e mentiras, coisas justas e coisas completamente absurdas, ou coisas que até já foram feitas (a “reforma aos 66 anos para os políticos como os restantes portugueses”, que estava no manifesto dos coletes amarelos, por exemplo, é o que já existe em Portugal, porque o Parlamento assim decidiu por voto maioritário, tal como decidiu, em 2005, acabar com o regime das subvenções vitalícias...).

Mas isso – o interesse jornalístico por estes fenómenos - é uma coisa. Outra é o que aconteceu hoje [sexta-feira passada], ao longo do dia, e foi completamente disparatado e até grave. Mais do que dos poucos que saíram à rua em nome do povo para logo insultar o povo ingrato que não compareceu (“os portugueses são uns covardes”, dizia um dos porta-vozes do movimento), a responsabilidade pelo que aconteceu hoje foi de quem nos quis impor como um verdadeiro evento histórico um quase-acontecimento. Foi ridículo.

Artigo publicado em expresso.sapo.pt a 22 de dezembro de 2018

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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