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A China é um exemplo da americanização da desigualdade

A concentração de riqueza, arrastada pelo sucesso de grandes empresas e do mercado financeiro, garantiu que os bilionários chineses sejam a turma maior no campeonato planetário.

Já todos foram felizes em Davos. Era uma parada de estrelas, estadistas, empresários, influencers, tecnólogos, ocasionalmente alguns produtores de blockbusters, toda a cultura do pop-capitalismo contemporâneo se juntava uma vez por ano na elegante estância suíça para dar os seus sinais ao mercado ansioso. No ano passado, a pandemia arrasou a festa e transferiu-a para o mundo virtual, o que faz perder o glamour das flutes de champagne e dos encontros de negócios. Apesar dessa tragédia, houve pelo menos um dos frequentadores, Marc Benioff, um bilionário que fundou a Salesforce, uma empresa de software, que então conseguiu resumir a autocongratulação dos vencedores da crise: “Temos de o dizer, os CEO foram definitivamente os heróis de 2020.” Talvez essa saga explique como se vão definindo algumas das mudanças surpreendentes do nosso mundo.

Os heróis da crise

Enquanto decorria o Fórum de Davos deste ano, foi publicado um livro sobre tal sucesso. O título é “Davos Man”, o subtítulo é “Como os Bilionários Devoram o Mundo” e o autor é um jornalista, Peter Goodman, o especialista do “New York Times” sobre a economia global. Goodman, como se nota, está zangado. O livro conclui que a fortuna dos bilionários (os que detêm um património de mais de mil milhões de dólares) cresceu 3,9 biliões (segundo a notação europeia; em termos norte-americanos seriam 3,9 triliões). Foi um triunfo, explicaram os beneficiários. E a razão é transparente, acrescenta Goodman, a desgraça é um bom negócio. Ou, como explicou um dos tais heróis, Stephen Schwarzman, o CEO da Blackstone, uma mega-agência gestora de fundos de investimento, “há sempre uma forma de fazer dinheiro nestes tipos de situações voláteis”, como a pandemia. Fizeram dinheiro.

O relatório anual da Oxfam, publicado na mesma semana, regista mais uma vez a evolução da desigualdade e, como Goodman, fez as contas. A conclusão é a mesma. Durante a pandemia, os 10 homens mais ricos do planeta duplicaram a sua fortuna, detendo agora mais do que a soma dos rendimentos de três mil milhões de pessoas. Acrescenta a Oxfam que, se estes heróis amontoassem as suas fortunas em notas de dólar, a pilha chegaria a meio caminho entre a Terra e a Lua. Note-se, a talhe de foice e antes que os liberais se indignem com estas comparações, que creem que os ditos terão alcançado tais resultados graças ao suor do rosto, que não foi por causa da produção ou comércio que estas fortunas cresceram (pois a produção e o comércio reduziram-se na pandemia), mas sim em consequência da valorização de patrimónios financeiros, ou seja, dito em bom português, da especulação.

Entre esses heroicos bilionários, segundo o “Relatório Hurun”, publicado em Pequim e sob o cuidado das suas autoridades, já se destacavam os chineses mesmo antes deste surto especulativo. Afirma o relatório que havia, em 2020, 696 bilionários norte-americanos, 177 indianos, 141 alemães, 134 britânicos, 100 suíços, 85 russos. E 1058 chineses, o maior contingente, uma prova de vitória.

A desigualdade chinesa

Esta concentração de bilionários pode ser explicada, em parte, pelo percurso da economia chinesa: em 1978, o país representava 3% do PIB mundial, 35 anos depois já estava em 20% e a crescer. Mas há ainda outra explicação relevante, que é o aumento da desigualdade. O Índice de Gini, que mede a desigualdade dos rendimentos, é de 0,41 no caso dos EUA, 0,385 no da China, segundo o Banco Mundial (ou 0,5, segundo o FMI). Um estudo de Piketty, Yang e Zucman, publicado em julho de 2019 na “American Economic Review”, calculava que, se em 1978 os 10% mais ricos no país detinham 27% do rendimento, tanto quanto os 50% mais pobres, a balança se desequilibrou para 41% a 15% em 2015, agravando-se depois (os autores registam essa evolução no gráfico abaixo). Segundo Branko Milanovic, professor numa universidade de Nova Iorque, esta desigualdade replica o modelo de distribuição desigual dos EUA nas suas três causas fundamentais: a concentração de capital (nos EUA os 10% mais ricos têm 60% dos ativos financeiros; na China, com os últimos dados disponíveis, de 2013, seria mais de 45%); a captação dos fluxos de rendimentos por uma elite fechada, e a transmissão intergeracional dessas vantagens, nomeadamente através do sistema de educação dos privilegiados.

Desigualdade do rendimento na China, em percentagem do total, de 1978 a 2019

Desigualdade do rendimento na China, em percentagem do total, de 1978 a 2019

Estes factos são tanto mais impressionantes quanto também foram aplicadas na China pelo menos duas políticas que produzem, ao contrário, convergência de rendimentos: um forte investimento nas províncias menos desenvolvidas e a anulação das limitações à mobilidade entre o interior rural e as grandes cidades. Em qualquer caso, a concentração de riqueza, arrastada pelo sucesso de grandes empresas e do mercado financeiro, garantiu que os bilionários chineses sejam a turma maior no campeonato planetário. Com um modelo de empresas dirigidas ou tuteladas por um partido e com o poder concentrado nas mãos de Xi Jinping, esta desigualdade para uns é a prova do esplendor, para outros será a porta fechada. O mundo está mais uniformizado do que parece.

Artigo publicado no jornal “Expresso” de 11 de fevereiro de 2022

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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