A cassete anti-Deolinda

porJorge Costa

21 de fevereiro 2011 - 0:32
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José Manuel Fernandes, Pedro Lomba, Pacheco Pereira: a direita procura argumentos para desmobilizar os precários.

Preocupados com o debate da precariedade e com as mobilizações anunciadas, José Manuel Fernandes (Público, 04.02.2011), Pedro Lomba (Público, 15.02.2011) e Pacheco Pereira (Sábado, 17.02.2011) dedicam-se a esse "sentimento de frustração geracional que ninguém sabe como interpretar" (Lomba). Ninguém sabe, mas a direita sabe.

Guerra de gerações

José Manuel Fernandes vai pelo terreno mais seguro, a teoria de que os jovens são vítimas dos seus pais, os milhões de portugueses que vivem "acima das possibilidades do país". Afirma Fernandes: "nós estragámos tudo", "desbaratámos numa geração o rendimento de duas gerações", "quisemos tudo: bons salários, sempre a subir, e segurança no emprego; casa própria e casa de férias"... Pedro Lomba contesta o slogan - deve-se "largar a conversa das gerações oprimidas e opressoras" - mas reforça a mesma tese: o que mobiliza os precários é a inveja da boa vida dos seus pais, esse "mundo de carreiras protegidas, de lugares garantidos e de reformas luxuosas das gerações anteriores".

Enquanto Fernandes chora pelos derrotados desta sua guerra ("mesmo quando têm muito mais formação, ficam à porta porque há demasiada gente instalada nos empregos que tomaram para a vida"), Lomba atribui os males do mundo à natureza humana ("os indivíduos são criaturas potencialmente batoteiras, interessadas acima de tudo em conservar o seu farnel"). Se pudessem, os precários também se alambazavam. Pacheco Pereira concorda: "as reivindicações dos 'precários' são no fundo exigências de entrada na função pública ou medidas cujo efeito na economia privada é gerar mais precariedade e desemprego".

Estes ideólogos parecem debater entre si, mas de facto transmitem uma mesma ideia: ganancioso ou coitadinho, o trabalho precário é que é normal, inevitável e até saudável para a sociedade. Pelo contrário, as relações laborais reguladas por lei e por contrato, a protecção da parte mais fraca (o trabalhador individual perante o poder do patrão), o acesso a sistemas de protecção social essenciais que só o contrato legal assegura (reforma, subsídio de doença, indemnização por despedimento, subsídio de desemprego) são coisas más para a economia, "conquistas de Abril", luxos "acima das nossas possibilidades". Nesta leitura, não existem abusos patronais nem governos obedientes. Há apenas milhões de portugueses que viveram e vivem à larga. E agora os filhos estão condenados a pagar. Com requinte, Pacheco Pereira só entre aspas admite os termos 'precariedade' e 'trabalho com direitos'.

Esta cassete é fraquinha

Primeiro, porque os precários sabem em que país vivem. É o país da Europa com a maior desigualdade de rendimentos entre quem tem mais e quem tem menos. Onde há bancos que, em plena crise, têm lucros recorde, distribuem-nos aos accionistas e pagam pouco ou nenhum imposto. O país onde o PS e o PSD cortam abonos de família enquanto recusam limitar os rendimentos dos gestores públicos milionários. São estes que vivem acima das nossas possibilidades.

Segundo, os precários conhecem a vida dos seus pais. Sabem que vivem num país com salário médio de 700 euros e conhecem os sacrifícios que a família fez para alguns poderem terminar um curso. Muitos têm pais ou avós a viver com pensões de 200 ou 300 euros. Os filhos de funcionários públicos sabem que o salário real dos pais diminuiu sempre, todos os anos, ao longo dos últimos 15 anos (excepto no ano eleitoral de 2009).

Terceiro - e mais importante -, os precários conhecem a sua própria vida. Sabem que grande parte dos dois milhões de portugueses pobres vão tendo trabalho e não conseguem deixar de ser pobres. Sabem que não podem comprometer-se com uma casa ou com uma família porque hoje ganham demasiado pouco e amanhã podem não ganhar nada. Uma enfermeira a recibo verde, um professor contratado, um operador de call-center em trabalho temporário, uma arquitecta estagiária não-remunerada, um investigador condenado a bolsas sucessivas, cada um conhece a sua revolta. Sabe que ela não resulta de "expectativas exageradas" (Pedro Lomba, na SIC), mas de um problema mais simples: não conseguem viver do seu trabalho e nem ter o contrato que é devido a funções permanentes como as que desempenham. Ora, é exactamente isto que a cassete anti-Deolinda quer continuar a recusar-lhes.

O grande irmão contra Deolinda

José Manuel Fernandes está confiante na estratégia de divisão: "esta geração nunca se revoltará" porque "habituou-se a desconfiar dos 'instalados'". Pelo seu lado, Pacheco Pereira vê chegar a revolta: "o principal factor de agitação social desses sectores juvenis é a dificuldade de conseguirem um emprego fixo e garantido (aquilo a que se chama um 'emprego com direitos')". E Pacheco avisa: é melhor não se meterem em políticas: "com outro tipo de esforço poderia obter outros resultados, com menos prosápia e menos revolta".

Daqui até ao protesto de 12 de Março (e depois) este discurso orwelliano vai ter muito tempo de antena. O combate à precariedade promove a precariedade. Trabalho com direitos é país na bancarrota. Não querer pobreza é querer privilégios. Ter um contrato é assaltar um precário. O inimigo vive em tua casa e tem o teu apelido.

Os ideólogos da direita pensam que os precários são parvos. Mas vão ter que ouvir a canção dos Deolinda até ao fim.

Jorge Costa
Sobre o/a autor(a)

Jorge Costa

Dirigente do Bloco de Esquerda. Jornalista.
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