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Cartilha "normalizada" do Estado Novo?
Não era minha intenção intervir na polémica que neste jornal tem oposto os historiadores Rui Ramos (RR) e Manuel Loff (ML), a propósito dos conteúdos sobre a História do século XX da História de Portugal de que o primeiro é, respectivamente, autor e co-autor. E não o faria, se o inacreditável artigo de Filomena Mónica (FM) publicado nestas colunas (1/8) a tal me não tivesse obrigado.
Permitam-me que comece por situar a questão, tal como a vejo: é ou não científica e civicamente relevante discutir criticamente os pontos de vista que enformam a versão da História política do século XX subscrita por RR? Eu acho que sim. Porque é um texto bem escrito, porque teve ampla divulgação e, sobretudo, porque é matéria que se prende umbilicalmente com a forma como pretendemos legitimar o presente e fazer o futuro. No meu entender, foi precisamente isso que, à sua maneira e no seu estilo assertivo, mas onde não vislumbro nada de insultuoso ou pessoalmente difamatório para o criticado, julgo que Manuel Loff pretendeu fazer.
Na realidade, essa parte da História de Portugal de RR, no seu modo corrente e aparentemente desproblematizador, no seu jeito de discurso do senso comum superficial e para o "grande público", é um texto empapado de ideologia. Uma ideologia que faz passar a visão da I República como um regime ditatorial, "revolucionário" e de "terror", por contraponto a um Estado Novo ordeiro e desdramatizado, quase banalizado na sua natureza política e social, transfigurado em ditadura catedrática, em regime conservador moderado e aceitável, apesar de um ou outro abuso. Essa visão emvários aspectos semelhante ao próprio discurso propagandístico do Estado Novo sobre a I República e sobre si próprio carece,a meu ver, de qualquer sustentação histórica. E, talvez por isso mesmo, convém salientá-lo, não é subscrita, ao que me parece, por uma significativa parte de historiadores e investigadores que, com diferentes perspectivas, trabalham sobre este período.
O que julgo intelectualmente inaceitável é que alguns dos candidatos do costume a sacerdotes do "pensamento único" venham ameaçar com a excomunhão do seu mundo civilizado quem não aceitar o que eles parece quererem transformar numa espécie de cartilha "normalizadora" do salazarismo e da sua representação histórica. Peço licença para dizer que, como historiador e como cidadão, não me intimidam. E por isso vamos ao que interessa.
É bem certo que a I República, e já várias vezes o escrevi, não foi, obviamente, uma democracia nem política, nem socialmente, sobretudo no sentido moderno do termo.
Com o seu liberalismo oligárquico, com as suas perseguições políticas (sobretudo na sua primeira fase contra as conspirações restauracionistas) e principalmente sociais (contra o movimento operário e sindical), foi um regime de liberdade frequentemente condicionada, à semelhança da maioria dos regimes liberais da Europa do primeiro quartel do século XX. Mas com o ser isso tudo, foi um sistema imensamente mais liberal e aberto do que o Estado Novo da censura prévia, da proibição e perseguição dos partidos, dos sindicatos livres, do direito à greve e da oposição em geral, da omnipresença da política política e da violência arbitrária, da opressão quotidiana dos aparelhos de repressão preventiva e de enquadramento totalizante. E tenho para mim que isso não é banalizável ou "normalizável".
Nem histórica, nem civicamente. É por isso que os valores matriciais da I República puderam ser os da resistência à ditadura salazarista e enformaram, como referência, os constituintes democráticos de 1976.
Infelizmente, RR não compareceu a este debate.
Refugiou-se sob o manto de uma pretensa intangibilidade moral, ou seja, de uma vitimização construída a partir, na realidade, da deturpação dramatizante das criticas do seu interlocutor. FM fez bem pior. Sem aparentar perceber nada de nada, veio à liça reclamar contra o facto de ML romper o consenso que ela acha que existia em torno do "terror republicano", apodálo de "marxista leninista" e de "historiador medíocre" - quem falou de insultar? - sem discutir um único dos seus pontos de vista e confessando desconhecer e não querer conhecer a obra de ML! E embalou: a "deturpação de um texto", diz FM, está na natureza dos comunistas e apela sem rebuço à censura do "seu" jornal contra tal gente.
Isto tudo, claro está, porque, como se terá percebido, FM "gosta de controvérsia"...
Para mim, ao contrário, acho absolutamente necessário que RR e FM continuem a ter pleno direito à palavra. Pelo menos, isso mantém-nos atentos e despertos relativamente aos "demónios capazes de despertar o pior da cultura portuguesa" (António Barreto dixit).
Quem quiser ler os artigos citados neste artigo, pode seguir estes links:
Manuel Loff: Uma história em fascículos... (I)
Manuel Loff: Uma história em fascículos... (II)
Rui Ramos: Um caso de difamação
Manuel Loff: Difamação
Maria Filomena Mónica: Loff e as suas mentiras
Artigo publicado na edição do Público de 5 de Setembro de 2012.
Comentários
Já por mais do que uma vez
Já por mais do que uma vez reparei que Maria Filomena Mónica procura legitimar a sua aversão face ao pluralismo de ideias, refugiando-se no argumento "eu sou de esquerda". Parece-me que MF utilizou para a escolha da sua orientção política os mesmos critérios que eu utilizei quando me perguntaram pela primeira vez qual era o meu clube de futebol. A resposta, como devem imaginar, estava carregada de argumentos e fundamentações inabaláveis. O que na verdade não deixa de ser coerente, uma vez que MF sabe que há certas coisas que são inquestionáveis e uma delas é o clube do "nosso" coração. Maldito sejas tu aquele que atenta contra as verdades da Maria Filomena! Será que esta senhora acha que as ideias de esquerda se encontram fundamentadas no pensamento de Carl Schmitt?
Rui Ramos é um fascista no
Rui Ramos é um fascista no armário (já com uma perna de fora).
O que RR, e muitos outros como ele, pretendem é a legitimização do regime fascista que durante 50 anos matou, torturou e mergulhou na fome e ignorância um povo inteiro, e no final envolveu-nos numa guerra absurda e injusta contra povos de africa.
RR deve ser livre de expressar as suas mentiras. Não pode é julgar que passarão desapercebidas.
Finalmente chegamos a este
Finalmente chegamos a este debate a meu ver absolutamente necessa'rio, que muito ganharia em comedimento orato'rio da parte de cada um de no's. A longa ditadura de Salazar impediu-nos desse viver civil, apana'gio das velhas democracias europeias habituadas ao debate das ideias. Por uns anos ainda, isso para no's sera' difi'cil, quase impossi'vel como abordar a nossa Histo'ria do século XX com a serenidade necessa'ria, e que so' o tempo, que tudo cura, nos dara'. Mas para cada português de hoje, nestes tempos conturbados que vivemos em que tanta necessidade temos de saber para onde vamos, um olhar para tra's, desapaixonado e sereno nos ajudara' a melhor compreender quem somos. Não poderemos fazer a économia deste debate, por mais doloroso que ele seja. O luto do Estado Novo tera' de ser feito sob pena de deixar du'vidas sobre meio século de vida portuguesa. Todos devemos participar, mesmo os que não são historiadores. E' assunto grave demais para ser reservado aos especialistas.
A ler
A ler http://pedroroloduarte.blogs.sapo.pt/281681.html, a experiência pessoal relatada é suficiente para formar uma opinião sobre esta polémica.
Há uma Parte deste texto que
Há uma Parte deste texto que das duas uma: ou sofre de uma falha de transmissão da mensagem ou de algo mais grave. Fazer uma comparação anacrónica entre a "liberdade ocasionalmente condicionada" da chamada Primeira República e o panorama de "opressão" do Estado Novo parece-me um "erro crasso". Tal como é referido no texto "...à semelhança da maioria dos regimes liberais da Europa do primeiro quartel do século XX" sobre a Primeira República, as comparações sobre o Estado Novo devem ser igualmente feitas nos mesmos moldes. Só a partir de extrapolações sincrónicas devidamente contextualizadas é que podemos obter um termo de comparação válido e fazermos deduções, sempre apoiadas nas fontes históricas.
Cumprimentos
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