Está aqui

Caridade de cara lavada

Devemos manter na nossa consciência e nas nossas ações a convicção de que apenas a defesa de um Estado Social forte e justo poderá destruir as desigualdades, aplacar a fome e reverter a miséria.

O empreendedorismo entrou definitivamente no vocabulário daqueles que nos querem fazer crer que o sucesso se resume às capacidades de cada um. O conceito de empreendedorismo já não se confina ao meio empresarial mas insinua-se na vida pessoal de cada um e aplica-se a todas as áreas transmitindo a ideia que só não vence quem for um completo incapaz. Não tens emprego? Sê empreendedor e cria o teu próprio sustento. Não tens comida na mesa? Pois, és pouco empreendedor. Não tens dinheiro para as propinas? Vende pipocas aos colegas e vês que o empreendedorismo compensa!

Agora, parece que está na moda, substituir o conceito de voluntariado pelo de empreendedorismo social. Voluntariado é coisa de velhos. Do tempo das senhoras da alta sociedade que distribuíam os restos dos banquetes pelo filhos da serventia da casa. E é preciso, de algum modo, cativar a malta nova para se substituir às responsabilidades sociais de um Estado Social moribundo.

Parece que o empreendedor social visa a maximização do capital social existente para realizar iniciativas, programas e ações que permitam o desenvolvimento sustentável de uma comunidade, cidade ou região. Emprega o seu esforço na prossecução do bem comum. Convenhamos que é um conceito muito mais trendy. Dá a ideia que se está envolvido num projeto muito mais eficiente, dinâmico, jovem e audacioso.

Mas é um outro conceito que acaba por ligar inexoravelmente empreendedorismo social e voluntariado. Trata-se da caridade. As fronteiras entre caridade e solidariedade nem sempre são claras para quem, de forma abnegada, tenta minimizar o sofrimento de quem mais necessita. Confusão essa em muito promovida pelos meios de comunicação social e pela nomenclatura dos programas de voluntariado, ops, de empreendedorismo social e respetivos promotores. Mas a diferença existe e não é difícil de perceber. A solidariedade baseia-se numa distribuição horizontal de bens, capital e serviços, em que todos contribuem para todos. Já a caridade pressupõe uma relação de poder e humilhação. Ainda que não seja esse o objetivo daqueles que a praticam.

Efetivamente, o instinto de ajudar o próximo é um instinto humano natural e evidentemente desejável. O problema surge quando o altruísmo e a vontade de auxiliar o próximo são utilizados para subverter a organização de uma solidariedade horizontal e no fundo, para menorizar a necessidade e utilidade de um Estado Social capaz de eliminar as desigualdades da sociedade capitalista em que vivemos.

O empreendedorismo social, ou voluntariado para os mais saudosos, tem vindo a ser utilizado como ferramenta de eleição deste Governo, para a progressiva destruição do Estado Social. Se a sociedade se organizar de forma a substituir-se a entidades e serviços, mais facilmente se difunde a ideia da inutilidade de um Estado Social de todos e para todos. Quem tem fome é alimentado por Associações e Bancos Alimentares. As lojas sociais fornecem as roupas e cada vez são mais diversificados os bens que doam. Tudo recolhido, claro está, com recurso à boa vontade de cada um. O trabalho de organização ou distribuição é realizado por... voluntários. Empregos remunerados são continuamente substituídos por ações de voluntariado, não sendo raro encontrar-se atualmente, anúncios nos classificados dos jornais, a oferecerem 'emprego voluntário'. Sem remuneração, regras, contratos ou horários. Às criancinhas ensina-se desde logo que é preciso 'ajudar os meninos que têm fome' e que passar umas horas a estender sacos à porta dos supermercados resolve os problemas da fome no Mundo.

A exploração dos valores mais nobres do ser humano em prol da acumulação de lucro é a marca de um Governo profundamente imoral que não olha a meios para atingir os seus fins, para quem o sofrimento de quem mais deviam proteger não causa mossa nem tão pouco a humilhação da esmola.

O combate a esta guerra execrável é dura e muitas vezes inglória. Afinal, quem consegue ser insensível à fome que se desenha nas mãos estendidas com que nos deparamos quotidianamente?

A linha que devemos traçar é a de manter na nossa consciência e nas nossas ações a convicção de que apenas a defesa de um Estado Social forte e justo poderá destruir as desigualdades, aplacar a fome e reverter a miséria dos que não possuem essa capacidade que nos querem fazer crer, inata, de vencer os obstáculos da vida e integrarem a massa de gente bem sucedida que por aqui anda.

Sobre o/a autor(a)

Feminista e ativista. Socióloga.
(...)