Cada criança no seu galho

porJosé Soeiro

30 de agosto 2012 - 0:16
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A proposta do Governo entende que nem todas as crianças estão "talhadas" para aprender algo mais do que serem mão-de-obra. De pequenino se impõe um destino.

Anunciam hoje os jornais que o Governo pretende, já para o ano letivo de 2013/2014, que os "estudantes com notas fracas" sejam "direcionados" para a aprendizagem de "ofícios como eletricista, talhante, agricultor ou canalizador"[1]. A ideia, segundo as notícias, é que os alunos com duas reprovações ou três chumbos intercalados até ao 6º ano sejam obrigados a frequentar esta via.



A proposta parece má de mais para ser verdade. Mas é a expressão profunda e a concretização curricular de uma visão do mundo e da escola. O que está na base do que é anunciado poderia ser resumido em três ideias.



Primeira ideia: a escola não serve para promover igualdade, mas deve assumir a desigualdade como programa, através da diferenciação de vias. A dualização dos percursos educativos é assim uma forma de estratificar internamente a escola, separando os que estão destinados a prosseguir para o ensino superior e aqueles cuja formação deve ser apenas a estritamente necessária para abandonarem o mais rapidamente possível a escola em direção ao mercado do trabalho. Trata-se de uma mudança profunda no fundamento e no mandato da escola democrática.



Segunda ideia: os "ofícios" não são uma coisa importante e que deve ser valorizada, mas um castigo para os miúdos que "não têm jeito para a escola", isto é, os que têm "notas fracas". A suposta apologia do ensino profissional (o objetivo do Ministro é que mais de 50% dos estudantes do ensino obrigatório optem por esta via ja este ano), tão enfatizada retoricamente, assenta por isso na sua desvalorização social. Isto é, não parte da vontade de diversificar a experiência de todos na escola e de combater a hierarquia entre saberes e qualificações, mas precisamente do oposto, da velha divisão social do trabalho que põe de um lado os "pobres" e os "incapazes", destinados ao trabalho manual apresentado como punição, e do outro os que "podem" ter acesso a um ensino mais geral.



A terceira ideia resulta das anteriores. A desigualdade educativa passa assim a ser a forma de garantir, o mais precocemente possível, a desigualdade social. Em função dos resultados das crianças até ao 6º ano, determina-se o seu percurso posterior. De acordo com esta concepção, a escola não pode nem deve garantir a todos uma educação de qualidade e nem todas as crianças estão "talhadas" para aprender algo mais do que serem mão-de-obra. De pequenino se impõe um destino.



Numa entrevista dada ao Público em 2010, o ministro Crato já defendia a ideia de um sistema educativo a várias velocidades: "devíamos ter alunos que conseguissem fazer as coisas de forma mais rigorosa e avançada, alunos que fizessem o percurso médio – a larga maioria – e alunos com apoios especiais. É um sistema que existe em muitos países"[2]. Percebemos agora como pode materializar-se esta suposta inovação, que é na realidade a mais velha e ultrapassada das ideias sobre a escola. Este regresso ao passado não diz apenas respeito a quem se envolve na educação. Nestes debates e nestas escolhas, na capacidade de as desmontar e de lhes resistir, jogam-se também dimensões fundamentais da própria democracia.

 


[1] Diário de Notícias, 29 de agosto de 2012.

[2] Nuno Crato "No Tagus Park o passado é passado" (entrevista de Miguel Pacheco e Inês Cardoso), Jornal Público, 2 de Junho de 2010.

José Soeiro
Sobre o/a autor(a)

José Soeiro

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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