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Bullying ou o reflexo de uma sociedade intolerante?

Não há prevenção do bullying sem combate ao racismo, à xenofobia, à discriminação sexual, social ou de género. Não há combate ao bullying sem promoção da empatia, sem respeito por quem é diferente ou promoção da tolerância.

O atropelamento de uma criança numa escola do Seixal quando fugia de colegas que a atormentavam chocou a opinião pública. Sou pai, não fujo à regra, fiquei chocado também. O tribunal das redes sociais apressou-se a partilhar, vezes sem fim, o triste episódio, ignorando que a cada divulgação, a exposição e o tormento da vítima seriam prolongados uma e outra vez.

As televisões mais sensacionalistas fizeram o que sabem fazer melhor: expuseram a vida das famílias – da vítima e da agressora – condenaram as mães e os pais e apressaram os autos de fé dos justiceiros de teclado. Pais e mães da minha geração correram a condenar os mais novos, saudando tempos idos: “naquela altura é que era”, o “respeitinho é muito bonito”, “havia brincadeira, mas éramos todos amigos”. Não éramos.

Aquilo que hoje se designa por bullying é um flagelo geracional que existe desde tempos imemoriais e é uma prova de força e de poder contra os considerados diferentes, quase sempre os mais fracos. Faço parte dessa geração que se apressa hoje a condenar o que fez ainda pior no auge da juventude.

A diferença entre esse tempo e o que vivemos é que, em primeiro lugar, não havia, na altura, telemóveis que filmassem as tristes cenas, congelando, “frame” a “frame”, os pormenores mais sórdidos. Em segundo, as agressões, tormentos e perseguições eram silenciadas no círculo escolar e familiar e encaradas como brincadeiras “normais da idade”.

Quem via mal, ganhava de pronto a alcunha de “caixa de óculos”, aos que tinham peso a mais, o epíteto “baleia”, “gordo” ou “monte de banha” era colado como um dos cromos trocados nos intervalos. Em cada turma, havia dois ou três. A coisa piorava se houvesse um colega de orientação sexual diferente. Em intensidade e em frequência. Mas, por norma, os “mimos” eram diários.

Havia jogos que hoje facilmente seriam condenados no Facebook ou alvo de intenso debate no Twitter. Lembro-me de cor do da “batata frita”, em que um infeliz tinha de atravessar um corredor formado pelos colegas e fugir de uma avalanche de palmadas, carolos e pontapés. Um exemplo pleno de respeito e amizade. Um mimo.

Não, não havia mais respeito. A geração que hoje se quer assumir como polícia, juiz e carcereira não era melhor do que a de hoje. Só que situações como a que assistimos no Seixal eram consideradas normais por serem tão frequentes. E não, não éramos todos amigos. A pressão social obrigava os mais fracos, os agredidos, a “comer e calar”, a consentir, a sorrir mesmo quando os óculos eram partidos, quando eram fechados numa sala ou enfiados num caixote do lixo. Uma geração de vítimas condenadas a reservar-se à sua condição de “diferente” e oprimida.

Tal como acontecia com a violência doméstica, era assunto para ninguém meter a colher. Muitas vezes, nem professores, nem os próprios pais. Era assim e pronto. As vítimas de bullying na escola habituaram-se a sofrer em silêncio, cresceram com o medo constante e hoje muitos são adultos inseguros ou com graves problemas psicológicos e de relacionamento social.

Combater este fenómeno é urgente e terá de ser feito à luz do que acontece hoje. Podemos criminalizar, podemos condenar - os miúdos e os pais -, podemos até culpar a escola ou a falta de segurança da zona. Mas, combater o bullying a sério, com eficácia, não passa por aí.

É preciso, como referiu com coragem o ator Manuel Moreira na RTP, ir “muito mais atrás”. Não sou fã de atitudes condenatórias nem de juízes em causa própria. Concordo que é preciso ir à raíz. Combater o bullying passa, de forma integrada, pelas famílias, pela escola e pela comunidade.

Não há prevenção do bullying sem combate ao racismo, à xenofobia, à discriminação sexual, social ou de género. Não há combate ao bullying sem promoção da empatia, sem respeito por quem é diferente ou promoção da tolerância. Podemos criar os observatórios, grupos de trabalho ou as comissões que quisermos.

Enquanto não mudarmos este paradigma, episódios como o do Seixal, que mais não são que o reflexo destes fenómenos sociais, vão continuar a chocar os pais como eu.

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Jornalista
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