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A Beatificação da Crise
A política da austeridade aí está, com novas medidas anunciadas diariamente. O Verão não fez abrandar o ritmo. Pelo contrário, a tradição de silly season serviu para que se avançasse com ainda mais convicção. E quando tudo parece conjugar-se para que se consiga de facto deitar abaixo com simples despachos o que levou décadas a construir, duas dimensões que se interligam parecem ganhar particular destaque.
Por um lado, um alibi que tudo consegue justificar: o memorando da troika. Ele é privatizações no pior contexto possível e em sectores em que as grandes potências europeias continuam a manter uma forte presença pública. Ele é aumento de impostos sem pestanejar. Ele é revisões do conceito de serviço público em domínios centrais do Estado Providência. E como se tudo isto não fosse já suficientemente mau, fazemos questão de ir ainda mais além do que o previsto no memorando, condenando-nos a um triste papel de bom aluno. O próprio professor parece incrédulo perante o nosso voluntarismo. Comentários para quê?
Mas o alibi troikiano acima referido tem beneficiado de uma preciosa ajuda. Como já tem vindo a ser sublinhado por muitos, um estranho sentimento de sacrifício redentor parece ter sido absorvido por uma parte considerável da opinião pública. Numa lógica muito cristã, assume-se que o sacrifício é o caminho necessário para o perdão pelos erros cometidos e para a recompensa futura. Estivemos a viver no pecado durante demasiado tempo, sendo portanto natural o presente castigo divino. Devemos assim abraçar políticas de sacrifício e humildade para que os amanhãs nos sejam mais risonhos. Esta espécie de religiosidade económica, que não por acaso algum clero mais tonto logo se dispôs a corroborar, parece ter tomado conta de diversas franjas sociais.
A coberto desta beatificação da crise, a mais ambiciosa vaga liberal de que há memória está em curso e à vista de todos. E são inúmeras as medidas que, mais do que direccionadas para a redução da despesa pública, são sobretudo norteadas por visões profundamente ideológicas sobre o papel do Estado na sociedade e na economia. Que o Outono Quente que se adivinha sirva para descongelar todos os redutos de apatia social perante o que se está a passar. Porque, como todos sabemos, o país já pagou demasiado caro por visões beatas do mundo.
Comentários
Nasci na cidade,vivi sempre
Nasci na cidade,vivi sempre na cidade. Mas há uns anos, começámos
a passar férias numa aldeia bastante pobre perto de Aveiro. Gostei
muito mas confundia-me a forma como as pessoas que passavam nos
cumprimentavam. Não diziam : olá, bom dia, boa tarde. Diziam "É a
Bida" ou " Tem que ser". Sempre interpretei essa saudação como
uma forma de subordinação resignada, tão comum neste país.
Se os da cidade não acordam, como acordar os que referi?
Luísa Coder
Infracções
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