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Bater em retirada
Diz-se, então, que o Afeganistão é livre. Era insuportável o fantasma de um conflito eterno no país, na mais longa guerra travada pelos EUA, após duas décadas de um mau álibi.
A partir do momento em que Barack Obama não decide retirar as tropas quando Osama bin Laden, há dez anos, é encontrado e é morto pelas tropas americanas, um momento bom para sair ou um timing exacto, cedeu ao pré-aviso de um dia qualquer. E foi então num qualquer dia, fruto de um acordo burilado durante anos, que o Afeganistão - no limiar da liberdade, solto da ocupação estrangeira - se viu tomado pelas forças talibãs em singulares 11 dias.
Apesar de terem sido retiradas mais de 120 mil pessoas em 17 dias, numa operação sem precedentes, é aterrador ouvir Biden mencionar a palavra "sucesso". Podemos contar números vs. dias, mas nunca esqueceremos as imagens. Se ninguém fica para trás numa guerra, nesta ficaram milhares de afegãos que trabalharam com as forças internacionais. Testemunhámos gente a cair de aviões. Milhares de pessoas em pânico no aeroporto e outras tantas sem sequer conseguir lá chegar. Atentados. Famílias separadas, partidas, esquecidas.
Se a operação de saída é um fracasso tão grande quanto a ocupação, já a tomada do poder pelos talibãs é, sobretudo, fruto de um processo de negociação falhado. Só por displicência, ingenuidade ou puro cansaço acumulado, poderiam os EUA prever outro desfecho que não este. Sobra a sensação de que a ingenuidade dos afegãos foi acreditar na palavra dada pelos americanos de que as forças talibãs estariam abertas à partilha do poder no momento da transição. Muito por isso, as forças afegãs no poder não criaram condições para lutar. Quando Biden acusa os afegãos de "nem sequer terem dado luta", entramos no plano da mais pura demagogia. Durante anos, enquanto os líderes talibãs asseguravam aos seus membros que os EUA lhes entregariam a chave do Palácio no momento da retirada, os afegãos criaram a ilusão de que estariam a participar num processo democrático de partilha de poder, ancorado na diplomacia americana. Nem se prepararam para resistir. Chegada a hora, a cedência era a sobrevivência.
Arrastão. A gestão unilateral que os EUA fizeram do processo de retirada das tropas arrastou todos os seus aliados como carros-vassoura, nenhum deles tido ou achado nas negociações, procedimentos e "timings" de saída. Biden conseguiu hipotecar - de uma assentada - a confiança dos seus aliados, a lealdade dos seus serviços secretos e o respeito, à escala internacional, das potências rivais. Escolheu sair, e bem, de uma guerra que se eternizava. Mas nunca um retirar de tropas pareceu tanto um bater em retirada. Ficará para sempre este olhar último, desarticulado e suicida, de uma saída "flash" e "kamikaze", à terrorista.
Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 3 de setembro de 2021
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