Bater com a porta entreaberta

porMiguel Guedes

18 de abril 2022 - 12:37
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A boa solução, aparentemente querida, mas protelada mesmo por aqueles que a carregam na boca, é pegar nos mapas existentes, percorrer o caminho e ter a coragem de fazer a regionalização eternamente adiada pelos interesses, bloqueios e hegemonias centrais.

A ameaça de saída do município do Porto da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), anunciada por Rui Moreira num arremesso de impaciência, é uma lufada de ar quente num ambiente que há muito não prima pela frescura. Somam-se anos disto, bafio por companhia e mofo como sinónimo.

O papel da ANMP tem que ultrapassar o de uma congregação baptista de feudos, interesses particulares proto-regionais ou de um centro de manutenção de recursos. Disto, pouco culpa terá Luísa Salgueiro, a primeira mulher a liderar a Associação e "presidenta" desde Dezembro do ano passado, sucedendo ao longo consulado de Manuel Machado (desde 2013). Certo é que a vontade de Rui Moreira de fazer o Porto correr em pista própria não vem de agora: em 2018, já tinha executado esse acto de pressão, vendo o executivo da Câmara aprovar uma moção que propunha que o município não se vinculasse, desde aí, a qualquer decisão passada ou futura da ANMP. Quatro anos depois, volta a ameaçar bater com a porta e, na próxima terça-feira, a ruptura com a ANMP será discutida em reunião de Câmara.

Rui Moreira sublinha, a traço grosso, o obstáculo a que a maioria prefere escapar, saindo de fininho: a descentralização, tal como está, é um engodo. Mais ainda, acrescento: neste país, a descentralização será sempre uma mentira. Descentralizar, verbo de encher. A boa solução, aparentemente querida, mas protelada mesmo por aqueles que a carregam na boca, é pegar nos mapas existentes, percorrer o caminho e ter a coragem de fazer a regionalização eternamente adiada pelos interesses, bloqueios e hegemonias centrais. Num contexto de maioria absoluta do PS, compete também aos autarcas fazer política de proximidade, não só numa lógica de vizinhança e geografia, mas também para não deixar que o poder absoluto se distancie do território, à medida que vai sentindo a política apenas como um mal necessário. Nesse sentido, o posicionamento táctico de Rui Moreira é reactivo mas ainda capaz para ganhar aos pontos. O Governo já anunciou que está disposto a avaliar as preocupações manifestadas e que o Orçamento do Estado tem margem para corrigir verbas da descentralização.

Ninguém ganha numa lógica de desunião. A porta que bate entreaberta deverá ser isso mesmo, um sério aviso à navegação e um ponto determinante para a correcção imediata das assimetrias e do que está profundamente errado na atribuição de competências que se faz acompanhar de uma esmola para as responsabilidades. A reversibilidade do que se passou nas áreas da saúde e da educação, em que o Estado entregou às autarquias os encargos e as obrigações, sem dotação orçamental capaz ou poder de decisão política para tomar opções, é - justamente - o ponto decisivo para perceber qual o peso específico da ANMP e qual o preço de, eventual e tragicamente, alguém correr por fora.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 15 de abril de 2022

Miguel Guedes
Sobre o/a autor(a)

Miguel Guedes

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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