José Manuel Barroso, presidente da Comissão Europeia, fez hoje o seu discurso de rentrée perante o parlamento europeu. Na forma, nenhuma novidade: quanto mais destroçada a Europa, quanto mais submetida aos caprichos de Berlim, quanto mais hostil à democracia dos cidadãos, mais pomposo o discurso. Se a Comissão empurra a Europa para agravar a recessão, teremos pela certa discurso sobre novos “desígnios”, “horizontes” ou “projectos”, grandes ideias sobre a salvação. Tínhamos direito e tivemos esse discurso mágico: agora é que é, a Europa vai em frente.
Mas, se a forma é tristemente previsível, já o conteúdo é manifestamente repetitivo. O mantra da União, desde há tantos anos, é sempre este: federação. Barroso teve mesmo o cuidado de apresentar a federação como ela é, com o exército, a soberania internacional, o governo central. Federação, pois este é o “desígnio” da Europa.
A federação, o Estado Europeu centralizado com os países como regiões subordinadas, é e sempre foi o europeísmo de direita. Para os seus apoiantes à direita e à esquerda, baseia-se unicamente num argumento: se Merkel manda em nós, mais vale elegermos a Merkel (ou outro governo) na esperança de que eles nos governem melhor do que Passos Coelho e nos deem o apoio financeiro que agora tanto regateiam.
Este argumento é errado, mistura ingenuidade e aventureirismo, simplesmente porque recusa a democracia. Não é democracia trocar um voto simbólico numa eleição europeia pela perda do poder efectivo de decisão sobre o seu país – e, de facto, sobre a Europa. Os eleitores de um país como Portugal não têm qualquer influência expressiva sobre um governo europeu, nem o peso de Portugal move qualquer governo em Berlim ao ponto de o obrigar às únicas decisões que podem alterar a distribuição dos rendimentos e portanto corrigir os problemas fundamentais da economia e da democracia entre nós.
Para esclarecer este assunto, façamos o seguinte exercício. Portugal precisa, para recuperar a sua economia, de uma recuperação dos rendimentos do trabalho e de um ataque à especulação e às rendas que têm sido a base da acumulação de capital. Não há outra via. Há algum federalista que imagine que medidas corajosas nesta direcção serão tomadas pelo governo federal europeu?
Aliás, os federalistas, os europeístas de direita, já apresentaram a sua política: o Tratado Orçamental é o principal passo no sentido do federalismo realmente existente. Coerentemente, anuncia a desagregação do Estado social porque, como com os almoços, não há governo europeu grátis – o que a direita, os partidos socialistas e os verdes pretendem com este tratado é mesmo fazer recuar as formas civilizacionais de solidariedade, porque estas prejudicam os mercados.
Ora, a Europa precisa de democracia. Precisa de democracia no plano europeu, com a eleição de órgãos que representem a convergência europeia (o parlamento europeu) e que equilibrem os interesses de todos os Estados (uma câmara dos Estados-Nação). E precisa de democracia nos planos nacionais, que é onde o povo pode determinar directamente as suas escolhas, punir e remover governos, corrigir políticas. Não pode perder nem uma nem outra.
É nesse sentido que o europeísmo de esquerda se tem batido desde sempre. Pela Europa, ou seja por políticas sociais para o emprego, para a tributação do capital, para a destruição das redes mafiosas de offshores e, portanto, contra as políticas e poderes institucionais que representam estes mercados contra os povos. Não vejo por isso nenhuma razão para desistir da razão do europeismo de esquerda. Nem muito menos o discurso de José Manuel Barroso.
