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Autodeterminação de género: em que ponto ficámos?

Urge responder “aos pedidos dos movimentos trans por uma despatologização do acesso aos cuidados de saúde” e garantir que o direito à autodeterminação de género seja acompanhado pelo direito à afirmação de género.

Desde agosto de 2018, graças à nova “lei de autodeterminação de género e proteção das características sexuais”, é possível às pessoas transgénero com mais de 18 anos e cidadania portuguesa, atualizar o seu nome e marcador de género em todos os seus documentos de identificação, baseando-se unicamente na sua autodeterminação.

Ou seja, para dar entrada a um processo de reconhecimento jurídico do género, a pessoa que o deseje tem exclusivamente de apresentar um requerimento reclamando o seu género e o novo nome a constar no seu registo. Esta é uma autodeterminação condicionada, visto que só é possível uma pessoa se reclamar como do “género masculino” ou como do “género feminino”, e só pode optar pelos nomes, divididos também por dois géneros, já constantes numa lista. Ainda assim, tratou-se de uma atualização muito relevante aos procedimentos impostos pela anterior “lei de identidade de género” (2011), que submetiam as pessoas transgénero a diagnósticos clínicos datados, e que as próprias diretivas internacionais de saúde têm vindo a criticar e procurar ultrapassar. Outra inovação positiva desta lei é a instalação de um modelo de nome social. Embora algumas associações divulguem esta medida como de uso exclusivo em contexto escolar, a lei é nítida ao disponibilizar este recurso para qualquer “ato ou procedimento”. Numa ação de sensibilização onde fui recentemente facilitadora, uma técnica superior da administração central colocava a seguinte questão: essa norma será aplicável ao próprio “Cartão de Cidadão”? A resposta é incerta, e eu não sou jurista, mas ao que parece, e havendo vontade, esta lei poderá dar respaldo suficiente para isso. Mais: modelos similares já existem noutros países da União Europeia, como, por exemplo, na França. Seja como for, a interpretação deste direito só poderá ser comprovado pela prática e, provavelmente, com recurso a litígios estratégicos.

No caso de jovens transgénero, com idade inferior a 18 anos, a lei permite agora que as atualizações dos documentos sejam antecipadas para os 16 anos, desde que a decisão da pessoa seja acompanhada de autorização parental, e informada por uma opinião clínica fornecida por profissional de saúde. Os media têm reportado alguns casos de jovens que já puderam atualizar os seus documentos com sucesso. Embora menos visíveis, também são conhecidos alguns casos bem-sucedidos de pessoas maiores de idade, assim como casos em que as pessoas têm enfrentado algumas dificuldades. A primeira, afeta exclusivamente as pessoas com menos recursos: algumas pessoas transgénero em situação de pobreza têm contactado as associações de defesa do direito à autodeterminação de género (entre as quais, a Ação Pela Identidade — API), por terem recusadas as suas provas de insuficiência económica. Estas provas são emitidas pelas juntas de freguesia ou pela própria segurança social, e estão legalmente previstas como suficientes para garantir a isenção de pagamento por quaisquer atos de registo civil. Todavia, um esclarecimento ministerial veio confundir o acesso a este direito, declarando que compete aos conservadores do registo civil aceitar, ou não, estas provas. Tenhamos nós em conta que estamos a falar, por exemplo, de pessoas desempregadas para quem os novos documentos podem significar melhores hipóteses de empregabilidade. Ou seja, o que se esclarece é que o direito à autodeterminação é entendido como um luxo, disponível apenas a quem possa pagar uma quantia de 200€. Outras dificuldades ocorrem nas embaixadas e consulados portugueses no estrangeiro. Na vigência da anterior legislação, estas entidades dificultaram como puderam o acesso de pessoas residentes fora de Portugal ao seu direito a mudarem os seus documentos. Algumas pessoas, com condições económicas para o fazer, optaram por aproveitar estadias de férias, ou viajavam de prepósito a Portugal, para obterem os seus novos documentos. Tais dificuldades parecem estar para durar: tenho recebido vários pedidos de ajuda sobre mulheres transgénero que procuraram apoio junto de uma Embaixada, às quais foi sugerido que deixassem contacto para uma ligação posterior, visto que não sabiam como proceder. Obviamente, a ligação posterior nunca ocorreu, e elas tiveram de voltar com uma cópia da lei e do modelo de requerimento em uso no território nacional. Tendo em conta que nem assim a resposta veio, ficamos à espera de mais um esclarecimento ministerial.

O que se mantém ainda em cima da mesa é a regulamentação desta nova lei, prevista entre as medidas de proteção que enumera, relativas à saúde e à educação e ensino. Nesse sentido, a Direção-Geral de Saúde (DGS) dispunha de um prazo até meados do passado mês de maio para apresentar um “modelo de intervenção, através de orientações e normas técnicas, a ser implementado pelos profissionais de saúde no âmbito das questões relacionadas com a identidade de género, expressão de género e características sexuais das pessoas”. A este pretexto, foi constituído um grupo de trabalho que já apresentou o rascunho de uma estratégia, e que conta com a participação dos gabinetes de duas secretárias de estado, Raquel Duarte, da saúde, e Rosa Monteiro, da igualdade, além de unidades de saúde, ONG, etc.. Trata-se, claro está, de um grupo de trabalho onde as relações de força são desfavoráveis às pessoas trans, de quem não se espera verdadeira participação, mas apenas passar a mensagem de que “foram ouvidas”.

Já no que diz respeito à educação e ensino, a lei deixa sob a responsabilidade direta dos membros do governo com as pastas da igualdade de género e da educação a adoção das “medidas administrativas necessárias” para a promoção do “exercício do direito à autodeterminação...”. O prazo era mais curto e ía até meados do passado mês de março, mas há ainda menos resultados, não sendo ainda conhecido nenhum documento de trabalho. Acrescente-se que estas medidas estão previstas também na Estratégia Nacional para a Igualdade e Não-discriminação, como medida a concluir até ao final de 2019.

A expetativa em torno destas medidas não podia deixar de ser grande, já que apenas estas poderão garantir a efetividade dos direitos conquistados pelas pessoas transgénero ao longo da presente legislatura. No caso específico da saúde, apenas o estabelecimento de uma estratégia e modelo de intervenção progressistas poderão assegurar a despatologização da diversidade de género, conforme os atuais Presidente da República, governo e maioria parlamentar concordaram no ano passado. Conforme uma reflexão que desenvolvi no passado, urge responder “aos pedidos dos movimentos trans por uma despatologização do acesso aos cuidados de saúde” e garantir que o direito à autodeterminação de género seja acompanhado pelo direito à afirmação de género. Afinal, apenas quando o estado deixar explícito aquilo que tem a oferecer a estas pessoas, é que será possível à sociedade civil trabalhar na monitorização dessa oferta, e na eventual procura por alternativas, permitindo que as pessoas transgénero possam continuar a ficar cada vez mais exigentes e autónomas.

Artigo publicado no jornal “Público” a 31 de maio de 2019

Sobre o/a autor(a)

Ativista feminista, dirigente do Bloco de Esquerda, co-diretora da ONG Ação Pela Identidade - API
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