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Austeridade e Estado de Exceção

A austeridade permanente não se poderá manter sem uma transformação dos regimes políticos, uma transformação que elimine os entraves à aplicação da austeridade.

A ascensão da globalização neoliberal tem confrontado as classes trabalhadoras com novos desafios e pressões. A cada vez maior predominância dos mercados financeiros, das organizações internacionais económicas e das empresas multinacionais nas relações internacionais intensificou a deriva em torno da desvalorização e precarização do trabalho, dos cortes nos salários e nas prestações sociais, da privatização dos serviços públicos essenciais e do retrair e degradar do Estado Social. Assistimos ao rasgar do contrato capital-trabalho que caracterizou a segunda metade do século XX por dificultar a acumulação capitalista, principalmente com a emergência e a competição de novas potências económicas, os BRICS1, que praticam políticas de salários indignos e de extrema desproteção social, o chamado dumping social. Mas se os direitos conquistados pelas classes trabalhadoras nos últimos dois séculos foram, gradualmente, postos em causa nos últimos trinta anos, com as crises e as recessões sucede-se uma brutal investida contra os mesmos. A atual crise económico-financeira está precisamente a desempenhar este papel.

A austeridade europeia, na base da desvalorização interna e da consolidação orçamental, representa a escolha racional da burguesia europeia para o acentuar da estratégia de transferência de rendimentos do fator trabalho para o fator capital

O deflagrar da crise, o seu contágio ao setor bancário europeu, a especulação das dívidas soberanas e os pedidos de “resgate” financeiro pela Grécia, Irlanda e Portugal permitiram o acentuar da estratégia de transferência de rendimentos do fator trabalho para o fator capital subjacente à globalização neoliberal. A austeridade europeia, na base da desvalorização interna e da consolidação orçamental, representa a escolha racional da burguesia europeia para o acentuar desta estratégia com o objetivo de degradar os direitos das classes trabalhadoras e o Estado Social, transformando as respetivas sociedades e regimes políticos. A austeridade foi-nos apresentada como a única solução, como sendo obrigatória, incontornável, marginalizando as políticas alternativas do debate democrático. Os seus defensores repetiram aos sete ventos que a crise foi culpa nossa, que a austeridade era a expiação do alegado pecado capital, o de termos vivido acima das nossas possibilidades com a bolha do crédito. Ao mesmo tempo propagaram a ideia de vivermos um “estado de emergência” nacional e incutiram-nos o sentimento do medo. Medo de mais espoliações de direitos e rendimentos se os mercados financeiros ficassem insatisfeitos ou através da chantagem da troika em não disponibilizar a próxima dose, a próxima tranche dos “resgates”, se as reformas estruturais e a austeridade não fossem devidamente executadas.

Mas se a austeridade coloca em causa os contratos sociais subjacentes aos regimes políticos dos Estados intervencionados pela troika, como foi executada? O caso grego assume-se como extremo, apontando para o facto de ter existido um Estado de exceção nos últimos anos a par do discurso do “estado de emergência” junto do povo grego. Podemos, de forma simplificada, definir o Estado de Exceção como a suspensão da própria ordem jurídica, a criação de um vazio jurídico privado de “ius”. Este define um regime da lei no qual a norma vale, mas em que não se aplica por não ter a devida força, ao mesmo tempo que atos que não possuem o valor de lei adquirem a sua força. A possível existência de um Estado de exceção na Grécia é substanciado por duas práticas que colocam em causa tanto a própria Constituição grega como o parlamento enquanto órgão soberano legislativo e a própria separação de poderes. A assinatura e execução do Memorando de Entendimento entre a troika e o Governo ocorreu à revelia da própria Constituição e dos poderes que esta concede ao parlamento. A segunda foi a produção de decretos-lei pelos anteriores Governos e o posterior envio, como "proposta", para o Presidente da República para emissão, marginalizando o Parlamento e os seus poderes legislativos.

A austeridade institucionalizou-se na União Europeia, o que significa o erodir e o degradar das funções sociais dos Estados europeus e o continuar da transferência de rendimentos do trabalho para o capital

A entrada da troika na Grécia após o pedido de “resgate”, em 2010, pelo então Governo liderado por Papandreou, líder do PASOK, e a assinatura do Memorando de Entendimento com a troika desrespeitaram a Constituição grega2, pois esta estipula que qualquer acordo ou convenção internacional que vincule o Estado grego a compromissos com outros Estados ou organizações internacionais deve ser votado no parlamento grego e aprovado por uma maioria de três quintos (180 deputados). Caso contrário estaria a violar os artigos 28º e 36º da Constituição grega, o que veio efetivamente a acontecer. O artigo 28º estipula que qualquer acordo ou convenção internacional deverá ser ratificado por uma maioria de três quintos do parlamento grego, enquanto o artigo 36º estabelece que qualquer transferência de poder do Estado grego para outras instituições, como a União Europeia ou o FMI, devem também ser alvo de aprovação pelo mesmo. No entanto, tal não impediu que o Memorando vigorasse e fosse aplicado à revelia da Constituição.

O segundo caso que aponta para a possível existência de um Estado de Exceção na Grécia nos últimos anos foi a produção de decretos-lei e do seu posterior envio para o Presidente da República à revelia do Parlamento. O artigo 44º da Constituição estipula que “under extraordinary circumstances of an urgent and unforeseeable need, the President of the Republic may, upon the proposal of the Cabinet, issue acts of legislative content.”. A definição de “circunstâncias extraordinárias de urgente e imprevisível necessidade” é demasiado lata, podendo ser facilmente utilizada de forma abusiva, tal como veio a acontecer. Por exemplo, o número de atos legislativos emitidos pelo Presidente da República sob recomendação do Governo em 2012 igualam os das últimas décadas somados, tendo o parlamento ficado à margem de qualquer debate ou aprovação. Acresce ainda o facto dos assuntos abordados nos vários atos legislativos abrangerem questões fundamentais para o povo grego, como o investimento estatal, a redução do salário mínimo (dos 751 para os 586€), o encerramento da ERT (a televisão pública grega), as privatizações de empresas públicas estratégicas, como as do abastecimento de água e dos portos navais, entre outros. Assim, questões fundamentais que deveriam ter sido alvo de um alargado debate nacional e parlamentar foram aprovadas através de mecanismos constitucionais de emergência. É de relembrar que os anteriores Governos gregos possuíam maioria absoluta no parlamento grego e, portanto, poderiam aprovar as leis que entendessem. No entanto, tais medidas não seriam bem recebidas pelo povo grego, minando-lhes o apoio popular, tal como veio a acontecer com o PASOK. Preferiram subverter o regime democrático-liberal.

Assim, nos últimos anos os Governos gregos transformaram-se numa instituição que em vez de defender a Constituição tentou miná-la e instaurar um Estado de Exceção para que a austeridade fosse aplicada sem “problemas” constitucionais. Com a utilização constante do artigo 44º pelos anteriores Governos gregos e o erodir da separação de poderes dos órgãos soberanos a linha entre democracia e autoritarismo esbateu-se. O Poder executivo assumiu-se também como poder legislativo. Assim, Giorgio Agamden na sua teoria do Estado de Exceção definiu-o como “um limite de indeterminação entre democracia e absolutismo”.

A austeridade permanente não se poderá manter sem uma transformação dos regimes políticos, uma transformação que elimine os entraves à aplicação da austeridade. Essa transformação poderá eventualmente passar pelo Estado de exceção, tendo em conta as especificidades nacionais

Um fenómeno importante também a ter em conta na implementação da austeridade e do Estado de exceção demonstra ser o crescente poder dos não-eleitos, os burocratas das organizações internacionais, sobre os governantes eleitos. Os primeiros impõem, sob chantagem, aos segundos decisões e medidas que não se revestem de qualquer legitimidade democrática, a que também se acresce, por sua vez, a progressiva adesão à ideologia neoliberal por parte dos partidos que na retórica se afirmam apologistas da social-democracia, mas que na prática aderiram aos dogmas neoliberais.

A vitória do Syriza, e a posterior formação do atual Governo, veio alterar tanto as práticas do possível Estado de exceção como a submissão perante os não-eleitos, rompendo com as práticas anti-democráticas e autoritárias dos governos anteriores. As medidas que o recente Governo grego tem vindo a encetar na luta contra a crise humanitária e na proteção dos interesses do povo grego, como a reabertura da ERT, têm sido, ao contrário do passado, discutidas e aprovadas no parlamento grego. Por outro lado, as negociações com as instituições europeias e o FMI têm demonstrado que o Governo grego não aceita todos os ditames que estes lhe impõem, tentando negociar e tendo até apresentado propostas alternativas que rompem com o passado da austeridade que obrigou o povo grego a suportar tantos sacrifícios injustos. Ninguém pode prever quais os resultados e consequências que as negociações terão nos próximos tempos, se a austeridade será rompida dentro da União Europeia, se o Governo grego capitulará ou mesmo se a Grécia sairá do euro.

Se um Estado de exceção parece ter vigorado na Grécia, nos restantes Estados intervencionados presenciou-se um discurso de “Estado de emergência”, discurso que parece ter desaparecido no que se refere ao presente e futuro, mas mantendo-se a austeridade. Esta institucionalizou-se no Direito da União Europeia com os Programas de Estabilidade e Crescimento (PEC) e com o Tratado Orçamental. Este último estipula nas suas normas que os Estados-membros não poderão ultrapassar o teto dos 60% da dívida pública e os 0,5% para o défice estrutural, e caso o façam poderão ser penalizados através de sanções, como o pagamento de uma multa ou uma sanção pecuniária compensatória até 0,1% do PIB do do respetivo Estado-membro. A austeridade institucionalizou-se na União Europeia, o que significa o erodir e o degradar das funções sociais dos Estados europeus e o continuar da transferência de rendimentos do trabalho para o capital. A austeridade permanente não se poderá manter sem uma transformação dos regimes políticos, uma transformação que elimine os entraves à aplicação da austeridade. Essa transformação poderá eventualmente passar pelo Estado de exceção, tendo em conta as especificidades nacionais.

Existe um limite para a aplicação dos métodos democráticos
Leon Trotsky


1Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

Sobre o/a autor(a)

Mestrando em Ciência Política
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