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Até o Arquitecto Saraiva

Dentro de uma semana, o Parlamento aprovará a proposta de convocação de um novo referendo para a descriminalização do aborto. Não é a primeira vez. De facto, esta mesma proposta já foi rejeitada uma vez pelo presidente Jorge Sampaio (que queria que só houvesse o referendo sobre a Constituição Europeia) e depois outra vez pelo Tribunal Constitucional (pela sua interpretação dos prazos da sessão parlamentar). Mas, agora, será aprovada na Assembleia, não há obstáculo do Tribunal Constitucional e o presidente Cavaco Silva deve marcar o referendo para Janeiro ou Fevereiro. É preciso ganhar esse referendo e vamos ganhá-lo.

É certo que há algum medo entre os sectores defensores da descriminalização. O primeiro referendo foi uma negociata entre o PS e o PSD, imposto por Guterres, que fez campanha discreta pelo "não" e, em 1998, foram tantas as pessoas que deram a coisa como ganha que não foram votar, permitindo uma vitória tangencial do "não", graças aos votos das ilhas - no continente ganhou o "sim" por pouco, nas ilhas ganhou o "não" por muito e o resultado final foi 16% de "não" e 15% de "sim". Esse passado é a razão do medo.
Mas o medo é ainda estimulado pela atitude do PCP. Não porque insista, como é seu direito, em que seja a Assembleia a resolver o problema: a Assembleia tem o poder e tem o direito de votar a lei. Seria uma forma de corrigir todos os erros do PS e do PCP que preferiram não resolver o problema logo depois do 25 de Abril e quando tinham maioria na Assembleia - ora, quando o PCP propõe pela primeira vez uma lei para a descriminalização já a direita era maioritária. Perderam-se assim mais de 30 anos e foram impostos centenas de milhares de abortos clandestinos. O problema agora é que não há votos suficientes na Assembleia, porque o PS só aprova a lei condicionada ao referendo. Sabendo disso, o PCP prefere fazer uma campanha de ajuste de contas, esgrimindo com o medo. E faz mal porque prejudica a luta pela mudança.
Ora, o referendo só se ganha se houver a convicção necessária para a criação de uma grande maioria pelo fim do julgamento das mulheres. Essa grande maioria é convocada pelo conhecimento de que foi a abstenção quem deu a vitória ao "não" em 1998 e, mais ainda, pelo conhecimento de muitos julgamentos que ocorreram desde então na Maia, em Aveiro, em Setúbal, em Lisboa: é verdade, a lei actual impõe julgamentos. Se a campanha pelo "sim" se concentrar no que é absolutamente essencial, que é acabar com a pena de 3 anos de prisão para as mulheres que abortam, então o debate será conduzido ao que importa. Não se discutirão os princípios religiosos da "vida" mas sim a única questão sobre a qual somos chamados a votar: devem as mulheres ser julgadas ou não?
A boa notícia é que esse é já o debate na sociedade. Vários bispos têm-se vindo a pronunciar sobre isso, indicando a sua dificuldade com a aplicação da lei criminal. O Cardeal sugere a abstenção a quem tenha dúvidas e a Igreja escreve que não se trata de um problema religioso. O PSD e o CDS não discutem outra coisa. No CDS, posicionam-se os que vão exigir a demissão de Ribeiro e Castro depois da sua derrota no referendo. No PSD, alonga-se a lista dos que não querem ficar com o CDS na derrota. Vários políticos da direita têm sugerido que o julgamento seja suspenso, ou que as acusações não conduzam a julgamento. É certamente incoerente - teríamos um crime que não tem condenação, e obrigar-se-ia o ministério público e os juízes a desconsiderarem o que é definido como crime - mas é também a prova da fragilidade do argumento da direita.
Numa palavra, na direita são mais os que não querem ficar na lista dos derrotados do referendo do que os que querem aplaudir os argumentos trauliteiros de quem quer manter a pena de prisão no Código Penal.

O campo do "sim" está por isso muito mais forte agora do que em 1998. Não que o referendo esteja ganho ou que seja fácil. Não é. Mas agora só se está a discutir o que interessa. E é aí que se pode ganhar o referendo.
A prova dos nove da desorientação da direita é a primeira página no semanário Sol da semana passada. O arquitecto Saraiva, o seu director, tinha escrito um editorial, quando dirigia o Expresso, apelando ao voto "não" no referendo anterior. Não esconde que não mudou de opinião nem com os julgamentos das mulheres. Agora, lança uma bomba em título: o PS poderia aceitar casamentos de homossexuais ou até a adopção de crianças. Quando se lê o artigo, a surpresa instala-se. O PS vai apresentar alguma lei nesse sentido? Não. Algum partido está a agendar alguma lei nesse sentido? Não. A JS tomou a iniciativa? Nada. Não há nada, não há notícia, não se passa nada.
E aí talvez o leitor se lembre de Santana Lopes que, perdido por cem perdido por mil, lançou no fim da última campanha eleitoral a sua bomba: cuidado com o casamento dos homossexuais e a adopção. Para mobilizar a direita. Mas ninguém lhe ligou e perdeu. O arquitecto Saraiva usa a mesma táctica: sentindo que pode ficar na lista dos derrotados do referendo, usa a arma mais poderosa que tem para mobilizar a direita que está dividida: cuidado, vêm aí os homossexuais.
É uma muito boa notícia que essa arma seja tão ridícula quanto uma inventona para ser desmentida logo que é publicada. Até o arquitecto Saraiva sabe que o referendo vai acabar com a lei que criminaliza, persegue e humilha as mulheres portuguesas.

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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