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Assim tipo cenas progressistas na Europa

O PS gaba-se de querer exportar a ‘geringonça’ para a Europa. Se essa exportação se resume a um acordo com o neoliberalismo, qualquer coisa não bate certo.

Lembram-se da manifestação em que alguns estudantes pediam “cenas tipo fixe”? Agora é a vez de gente muito solene prometer uma “cena tipo frente progressista”. Mas esta “frente”, que Costa terá proposto a Macron para o próximo Parlamento Europeu, é puro nevoeiro. O facto é que os arautos do “nós somos Europa” nunca esclarecem como será este imbróglio de alianças, que aliás divide a sua própria família política e que nos parece levar para terra incógnita.

Uma recente insinuação pública sobre esta “frente” foi a mensagem que o primeiro-ministro português enviou a um comício eleitoral de Macron, em que sugere que “as forças progressistas (se) devem unir para permitir a mudança necessária”. A fórmula até poderia ser interpretada como um rendilhado diplomático mas, interrogado sobre o assunto, Costa enviou à Lusa uma nota em que explica que, no seu entender, “a Europa precisa de uma grande frente progressista e estou empenhado em ajudar a construir as pontes necessárias”. O encontro desta semana entre Macron e Costa, em Paris, confirma este vaivém para uma prometida convergência. Explicou o Presidente francês que “temos de construir, com outros colegas, uma coligação de progresso e futuro para o próximo Parlamento [Europeu], mas também para o próximo executivo europeu”. É um frenesim de muitas conversas em pouco tempo.

Em todo o caso, ao contrário da discrição com que o assunto é tratado neste cantinho à beira-mar plantado, a imprensa francesa diz que a preparação do casamento já vai em aliança no dedo. O Partido Socialista Europeu esclareceu seraficamente que “não está incomodado” com esta iniciativa. Em França diz-se que seria um grupo parlamentar europeu que juntaria alguns dos socialistas (que tinham 185 deputados, mas estão em perda) com os eleitos de Macron e dos seus aliados (ninguém sabe quantos serão), que por sua vez prometeram integrar uma aliança com os liberais (atualmente 69 deputados) para enfrentar a direita europeia do PPE (que tem agora 216 deputados, divididos entre os merkelianos e a extrema-direita do Grupo de Visegrado). Ou então um entendimento para propor um presidente da Comissão ou do Conselho. Quem? Mistério.

Ora, o projeto é duvidoso pelo menos por duas razões. A primeira é que chamar a isto “frente progressista” é um arrojo. Os liberais, que já assinaram com Macron um protocolo que curiosamente declarava “romper com o bipartidismo” entre os socialistas e a direita merkeliana, são conduzidos por Mark Rutte, o primeiro-ministro holandês, e representam o tradicional programa neoliberal da direita. Seria mais fácil vê-los numa associação com Passos Coelho do que com Costa, pelo que chamar a isto “progressista” é em qualquer caso um floreado extravagante. A segunda razão é que esta frente divide os próprios socialistas. Estes já foram destroçados em França pelo sucesso inicial de Macron e pode até admitir-se que Costa despreze os seus camaradas locais. Mas em Espanha isto é um problema, porque Macron se aliou ao Ciudadanos, e não vejo como possa haver um grupo europeu que tenha simultaneamente o PSOE, que está no Governo, e esse partido de oposição de direita e que é aliado da extrema-direita. É uma salganhada impossível, o que significa que, se Macron leva os seus, o PSOE fica de fora, a não ser que seja tudo a fingir.

Assim, a “frente progressista” pode vir a ser uma frente (juntando partidos tão diferentes mas afastando uma parte dos socialistas), mas duvido que seja progressista (os liberais defenderam arduamente sanções contra Portugal e voltarão a fazer o mesmo na primeira oportunidade) e, sobretudo, que configure uma alternativa razoável para a União Europeia. A não ser que o programa neoliberal à Rutte e Macron seja o novo oásis. Só que isso, uma União com orçamento ainda mais minguado e austeridade mais pesada, não se pode dizer em Portugal, pois não? Alguém se poderia lembrar de perguntar se esta aliança em Bruxelas não é o contrário do que promete o Governo em Lisboa. O certo é que, em Portugal, o PS continua a repetir a promessa de um “novo contrato social europeu” e quer ser plebiscitado no meio da santa ignorância sobre estas aventuras casamenteiras. Mas isso vai ser com os liberais? Será que houve milagre da reconfiguração das almas e Macron deixou de ser o Presidente dos milionários, Rivera o nacionalista espanholista e Rutte o arauto dos mercados e dos truques financeiros? Por outro lado, o PS tem vindo a gabar-se de querer exportar a ‘geringonça’ para a Europa. Se essa exportação se resume a um acordo com os promotores do neoliberalismo, qualquer coisa não bate certo.

A “frente progressista” talvez seja então, e simplesmente, a prova da incoerência dos seus inventores, reduzidos a manobrar em ziguezague por falta de um projeto apresentável. Por alguma razão a escondem meticulosamente dos eleitores em Portugal.

Artigo publicado a 24 de maio de 2019

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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