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Aperte o cinto de segurança, ainda vem aí o pior

Quem afirmar que basta ferrovia ou que não deve haver subida de um pobre salário mínimo estará a fechar os olhos à tempestade.

Costa Silva disse-o na apresentação do seu plano e tem razão: ainda virá o pior, antes de podermos melhorar. Mesmo que seja ainda difícil antecipar o efeito pleno da recessão e, sobretudo, o tempo do seu impacto, os dados apresentados esta semana pela OCDE são indicadores. Nos países do G20, os mais desenvolvidos, a queda do PIB no segundo trimestre terá sido de 6,9%, e só nos Estados Unidos de 9%. Lembra a organização que durante a recessão de 2009, que foi provocada pelo crash financeiro do final do ano anterior, o pior trimestre registou uma queda quatro vezes menor, de 1,6% (mas que se estendeu por vários trimestres). Nestes cálculos, se houver um novo confinamento, o que para já só ocorreu em Israel, a queda anual nestes países poderá chegar aos 6%. Ou seja, perder-se-iam num ápice cinco anos de crescimento, com efeitos sociais pesados. Como as economias do G20 representam 80% do produto global, só por este efeito teríamos a segunda recessão do século XXI a arrastar o mundo para uma redução do PIB em termos absolutos, o que nunca aconteceu na segunda metade do século XX, e a recuperação pode demorar mais cinco anos, diz o Banco Mundial.

Uns mal e outro bem

Nesse trimestre, até fim de junho, a zona euro sofreu uma queda de 11,8%, como a União Europeia no seu todo, mas Portugal teve uma redução do PIB de 13,9%. O número é impressionante e a diferença é preocupante, mas conhecem-se as razões: Portugal é muito vulnerável às oscilações do turismo, uma das nossas principais exportações, e, ao contrário de outros países turísticos como Espanha e Itália, tem um sistema produtivo frágil, uma procura interna deprimida e escasso investimento.

Em todo o caso, por razões específicas, o choque em outras economias é ainda mais devastador: no Reino Unido a queda foi de 20,4% e na Índia de 25,2%. Nestes países, a redução da produção aproxima-se do que seria o resultado de uma guerra (ou da crise da Grécia depois do golpe troikista). É certo que neste panorama há exceções, como a da China, que cresceu 11,5% nesse segundo trimestre. É uma recuperação notável, mesmo que esse número possa ser enganador: este crescimento trimestral compara com o de janeiro a fim de março, quando o fecho das indústrias e medidas radicais de confinamento foram aplicadas (a queda tinha sido então de cerca de 7%, a primeira recessão em 28 anos). Se para evitar essa distorção compararmos a economia chinesa com o segundo trimestre de 2019, a recuperação é só de 3,2%, mesmo assim notável (comparando com o período homólogo, o G20 perdeu 9,1%). A diferença é que a China atuou mais cedo e tem uma capacidade de investimento como nenhuma outra grande economia: tem os excedentes que o permitem, controla o seu sistema financeiro e tem a vontade suficiente.

Haja dinheiro

Dentro de algumas semanas teremos os dados do terceiro trimestre, mas já se sabe que a recuperação exigiria uma rápida expansão da procura e que foi pior do que se esperava. Pelo contrário, algumas das grandes economias não têm capacidade de investimento e as famílias estão a poupar quanto podem, temerosas do futuro. Grande parte dos rios de dinheiro anunciados na União Europeia estão agendados para as calendas do próximo ano e ainda há pouco o Governo lutava por conseguir o envio dos fundos já prometidos para o lay-off e os apoios ao emprego, o programa Sure. E toda a operação continua envolvida em incerteza política, com a Hungria a fazer chantagem e a burocracia de Bruxelas a cumprir o que melhor sabe fazer. Assim, só temos para já em cima da mesa o programa de compra de ativos pelo BCE, cujos efeitos são importantes nos juros das dívidas públicas, ao mesmo tempo que criam inflação financeira e o delírio das bolsas, mas nenhum investimento.

Acresce outro fator de incerteza, o ­maior, que são as eleições norte-americanas. A incerteza do seu resultado vai-se acentuan­do, Biden mobiliza a perceção do desinteresse de Trump em responder ao covid e Trump tenta aterrorizar o eleitorado com o argumento da segurança. Mas, como já aqui lembrei, tem a seu favor a ilusão económica: para já, sete em cada dez desempregados pelo covid recebem um subsídio de desemprego superior ao seu salário anterior. Depois acabará. Assim, se for eleito, teremos a tempestade perfeita em 2021, com guerra comercial e recessão prolongada, que pode ser agravada pelo colapso da negociação do ‘Brexit’.

Para nos protegermos no nosso canto à beira-mar plantado só há caminho com mais investimento e mais procura interna. Quem afirmar que basta ferrovia ou que não deve haver subida de um pobre salário mínimo estará a fechar os olhos à tempestade.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 19 de setembro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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