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Angústia e performatividade nos exames nacionais

Se da perversidade dos exames nacionais há muito se sabe, da intencionalidade em os manter é que convém indagar. A quem servem?

O discurso que assume os exames nacionais como essenciais para avaliar o sistema educativo e aferir o mérito individual instalou-se de modo inabalável nas últimas décadas1. Teve o seu expoente máximo com Nuno Crato que implementou os exames de 4.º e de 6.º ano, além dos de 9.º, 11.º e de 12.º ano.

As ideias neoliberais, hegemónicas desde os anos noventa do século passado, passam a olhar a escola de fora para dentro, de cima para baixo e varrem a investigação de décadas das Ciências da Educação, fazendo tábua rasa das análises e dos contributos. Para estas visões, a escola está em crise e são os intocáveis mandamentos da gestão empresarial que a podem salvar. Mérito, avaliação, exames, entre outros, tornam-se vocábulos do quotidiano das escolas e são formas de controlo indireto da ação de ensinar e de aprender.

Este desiderato, apurado ao longo dos anos, tem sido usado como forma de pressionar professores e alunos. Uns por força da sua responsabilidade no sucesso dos alunos, outros por pressão em levar a escola a fazer boa figura; sobretudo a partir do momento em que um diretor de jornal exigiu, ainda em tempos de Guterres como primeiro-ministro, a divulgação dos rankings, isto é, a lista das escolas organizadas por resultados nos exames nacionais. O pretexto era a exigência de uma novel sociedade, liberal e competitiva, que clamava em saber o real sucesso da sua prole e ansiava por escolher a escola onde os rebentos poderiam aprender melhor as duras regras da incontornável meritocracia.

Uma dezena de ministros da educação depois, chega-se ao tempo atual. Numa qualquer escola com ensino básico (e também secundário), a partir de uma determinada época do ano escolar, mais ou menos por volta do carnaval, deixa-se de poder contar com os professores de Matemática e de Português. Nem visitas de estudo, nem saraus, nem debates, nem videogramas, nem pesquisas, nem experiências, nem palestras, nem aulas no exterior e nem o Erasmus escapa. Todas as atividades passam a ser planeadas sem que as aulas, reforços e apoios destas duas disciplinas sejam prejudicadas. Caso prejudiquem, suspendem-se. Liminarmente.

Os professores de Português e de Matemática, e com eles os alunos e alunas, entram numa espécie de clausura entre a multidão, concentrados no seu papel de agentes do ministro da educação e de outras instâncias de insondáveis poderes no convencimento da inabalável, inquestionável e suprema importância dos exames de 9.º ano. Largam, os primeiros, o papel de professores, e assumem o de formadores-treinadores de matérias e de conteúdos à pressão, pois nunca se sabe o que os iluminados do dogmático e inexpugnável IAVE2 vão exigir nos exames. Pelo sim, pelo não, martela-se tudo na cabeça dos alunos e das alunas, nos 225 minutos semanais3, nas aulas de reforço e nas de apoio a toda a hora. E repete-se. Volta-se a repetir. Mais uma vez, agora, só para os “mais fracos”. E cresce a pressão sobre os alunos. Aula após aula, reforço após reforço, apoio após apoio, lembra-se a importância de ter as melhores notas possíveis: é a Escola que também está em causa - e o professor também -, adivinham os alunos.

Ora, nada mais engenhoso do que pormos jovens a detestar Camões e o Teorema de Pitágoras através de uma repetição até ao infinito a que chamam de preparação para os exames nacionais. Só aos filhos dos esclarecidos e bem-sucedidos pais e mães, está reservado o sucesso pleno nas duas disciplinas. Deles se espera que venham a ser as elites, ainda que acéfalas, acríticas e repetidoras, dos tempos atuais, formadas, mais tarde, em caras e exclusivas escolas privadas de gestão ou similares.

As aulas terminam mais cedo para os alunos do 9.º ano. As outras disciplinas que corram também se querem terminar os programas infindáveis e “ai de quem não os termine” - só pode ser por incompetência. Metade do ano letivo vai à vida para estes alunos, dos quais mais de 65 por cento nunca mais terá História ou Geografia no Ensino Secundário, já que se tornou moda fugir às Humanidades.

Passados largos meses e três estações do ano depois, exatamente quando é preciso fazer soar de novo as campainhas de alarme da “examinite”, isto é, por volta do Carnaval, angustiadamente, colam os professores das duas referidas disciplinas os narizes às listas dos rankings. - Em que lugar fiquei?, perguntam-se. Sim, os resultados dos alunos são o reflexo da competência performativa do professor. E não alivia nem iliba que se saiba ou se demonstre o quão difícil foi levar aqueles alunos e alunas ao 3, quanto mais ao 4 ou ao 5, quando o lugar no ranking da escola está abaixo dos primeiros 50. Nem sequer interessa saber, nem convocar, que a grande parte dos pais e das mães, já mais novos que a maioria dos professores atuais, mal tem o 6.º ou o 9.º ano.

A investigação em Sociologia da Educação demonstra que a função de reprodução social dos exames e a sobrevalorização das disciplinas de Matemática e de Português contribuem para o insucesso escolar e, pior, para o inculcamento da culpa pelo insucesso individual. Sabe-se, há décadas, que os exames nacionais são feitos para o aluno médio. Todos aqueles cuja bagagem cultural for diferente da desse aluno-tipo, não têm as mesmas possibilidades de sucesso.

Ora, se da perversidade dos exames nacionais há muito se sabe, da intencionalidade em os manter é que convém indagar. A quem servem? Exames e rankings mais não são do que uma gigantesca e subtil campanha de marketing de modo a levar pais e mães, bem formados e informados4, a escolher a melhor escola para os descendentes. Se for uma escola privada, tanto melhor: menor diversidade cultural e étnica e menos necessidades educativas especiais.

Vista de um outro ângulo, em tempos de ferozes ataques aos serviços públicos, esta prática da “examinite”, sem fundamento, configura um ataque e uma tentativa bem sucedida de enfraquecimento da escola pública e de enaltecimento das vetustas qualidades do ensino privado. Não deveria já ter soado um outro alerta?


Notas:

1 As formas de avaliação dos sistemas educativos são uma discussão pertinente, mas não neste âmbito. As formas são múltiplas, mas menos onerosas, avassaladoras e arrasadoras das aprendizagens.

2 IAVE é a sigla para Instituto de Avaliação Educativa.

3 225 minutos correspondem a duas aulas de 90 minutos e uma de 45 para cada uma das disciplinas de exame. Em muitas escolas a conta é feita a partir dos 50 minutos para cada aula.

4 Basta folhear as publicações especiais dos jornais da praça e reparar na publicidade de uma página aos inúmeros colégios privados.

Sobre o/a autor(a)

Professora de História e Sociologia da Educação. Dirigente do Bloco de Esquerda
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