No último 30 de agosto, a ONU assinalou pela décima vez o Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimento Forçado, estimando que centenas de milhares de pessoas em pelo menos 85 países foram privadas da liberdade e/ou mortas sem que os seus sequestradores e assassinos o admitam. O secretário-geral, António Guterres, destacou que a impunidade dos autores destes crimes “agrava o sofrimento e a angústia” de famílias e sociedades que têm o direito de saber a verdade sobre essas pessoas.
O Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICR) lançou uma campanha na América Latina, onde há dezenas de milhares de pessoas desaparecidas devido a conflitos armados do passado e do presente, em países como o Brasil, a Colômbia, El Salvador, Guatemala, Honduras, México e Peru.
No Brasil, o Movimento Vozes do Silêncio lançou a campanha “Quem é essa mulher?”, fazendo um chamamento para o debate sobre “Quem são essas pessoas que procuram por seus entes queridos?”
Os desaparecidos de Angola
Já o Jornal de Angola, que reflete as posições do governo daquele país, publicou um extenso artigo sobre a efeméride, citando abundantemente a ONU. Porém, na hora de apontar casos de desaparecimentos, não achou melhor exemplo que o do… Brasil, onde, segundo o artigo, “só no Rio de Janeiro, cerca de 500 pessoas desaparecem por mês”, ou o dos Estados Unidos, onde a medida “de separar as famílias dos migrantes menores, tomada pela administração Trump, levou a que se perdesse o rasto de quase 1.500 crianças”. Sobre Angola, o artigo diz apenas o seguinte: “No nosso país, a par de Moçambique, tinham sido registados dois casos.”
É de deixar estarrecido o mais insensível.
Será que o diário mais antigo e de maior circulação do país nunca ouviu falar das vítimas do massacre desencadeado após os acontecimentos do dia 27 de maio de 1977? Nesta ocasião, e durante cerca de dois anos, milhares de angolanos e angolanas foram vítimas de “prisão, de sequestro ou qualquer outra forma de privação de liberdade (…) perpetrada por agentes do Estado”, que se recusou posteriormente a “admitir a privação de liberdade ou a ocultação do destino ou do paradeiro da pessoa desaparecida, privando-a assim da proteção da lei.” A definição entre aspas é a da ONU1.
O “27 de Maio”
No dia 27 de maio de 1977, Luanda foi palco de ações militares desencadeadas por setores críticos do MPLA, alinhados com dois membros expulsos do comité central do partido, Nito Alves e José Van-Dunem. Tropas revoltosas tomaram a cadeia de São Paulo e ocuparam a rádio nacional, que passou a transmitir apelos à realização de uma manifestação diante do palácio presidencial. A intervenção das tropas cubanas estacionadas na capital angolana pôs fim às manifestações e ações militares rebeldes. Na sequência da descoberta de seis corpos de militares e políticos – entre eles o ministro das Finanças, Saidy Mingas, e o comandante Dangereux –, o presidente Agostinho Neto acusou os dissidentes de serem os responsáveis por essas mortes: “Não há mais tolerância. Nós vamos proceder duma maneira firme e dura”, anunciou Neto, na tarde do dia 27, escancarando as portas para o massacre que se seguiu.
É difícil determinar a dimensão da matança, já que os números estimados vão de 8 mil a 80 mil. A Amnistia Internacional calculou as vítimas do 27 de maio angolano em 30 mil. Mas, mesmo indo pelos mínimos, já temos um crime de insuportáveis proporções. Em 1977, Angola tinha 7,5 milhões de habitantes. Se seguirmos a estimativa da Amnistia Internacional, temos assim um desaparecido para cada 250 habitantes, e mesmo adotando a estimativa de 8 mil teremos uma vítima a cada 937 habitantes. No Brasil, estima-se que houve 379 mortos e desaparecidos no regime militar, o que dá um a cada 349.340 habitantes2.
O historiador Jean-Michel Mabeko-Tali, autor de “O MPLA perante si próprio (1960-1977)”, única obra de referência sobre a história do MPLA, descreve desta forma os dias que se seguiram ao 27 de Maio: “Uma vez esmagado o levantamento, uma repressão sangrenta abateu-se, de facto, sobre a sociedade angolana no seu conjunto. Qualquer pessoa suspeita de ser, de perto ou de longe, ligada à dissidência foi presa, torturada e em alguns casos executada sem qualquer tipo de processo. Simples transeuntes lá deixaram a pele. Ajustes de contas pessoais encontraram aqui um terreno propício para a sua execução. O estado de excepção foi decretado, assim como a restrição e o controlo da circulação de pessoas. Com a fuga dos chefes nitistas, desencadeou-se uma caça ao homem em toda a cidade e em todo o país.”3
As famílias têm o direito de saber a verdade
Mas as vítimas dos desaparecimentos forçados não são apenas os desaparecidos. São também “todo indivíduo que tiver sofrido dano como resultado direto de um desaparecimento forçado”. Baseada nisto, a ONU reconhece o direito das famílias de “saber a verdade sobre as circunstâncias do desaparecimento forçado, o andamento e os resultados da investigação e o destino da pessoa desaparecida”.
No caso angolano, milhares de familiares de vítimas sofreram durante anos – e sofrem até hoje – sem poderem fazer o seu luto, dado que as autoridades do Estado se recusavam a assumir qualquer responsabilidade sobre os desaparecimentos, negando-se assim a fornecer certidões de óbito. Como consequência, viúvas e órfãos passaram meses ou anos sofrendo com a incerteza em relação ao destino dos seus entes queridos. E quando o passar do tempo os convenceu da sua morte, não conseguiram obter pensões, vender bens, refazer a sua vida, porque não possuíam o reconhecimento oficial do óbito.
Responsabilidade central de Agostinho Neto
Durante três décadas, o assunto 27 de maio foi “tabu” dentro de Angola e largamente ignorado no exterior. É já com este século bem avançado que o silêncio começa a quebrar-se pela publicação de obras da autoria de sobreviventes, jornalistas e historiadores. À medida que se reuniam as informações sobre as torturas, as valas comuns, os pelotões de fuzilamento, o mundo começava a ter uma nova visão daquilo em que se transformara o regime pós-colonial angolano. Segundo o já citado historiador Mabeko-Tali, o desfecho trágico do 27 de maio “marcou para sempre uma viragem na própria natureza do Estado angolano e do MPLA como movimento, depois partido-Estado. Em consequência, o Estado angolano enveredou por um caminho autoritarista (…)”.
Hoje, incapazes de negar os crimes praticados, há defensores do regime do MPLA que negam a responsabilidade de Agostinho Neto sobre o cortejo de assassinatos extrajudiciais, das torturas e dos campos de concentração. A culpa seria dos órgãos de segurança, dizem. Neto nada sabia.
O problema desta versão idílica do chamado “presidente-poeta” se esbarra com as suas próprias afirmações. “Certamente, não vamos perder muito tempo com julgamentos. Nós vamos ditar uma sentença”, advertia Neto4. E o Jornal de Angola, o único diário que se publicava então, multiplicava os títulos que em tudo recordam as histórias do farwest norte-americano: “Amarrem-nos onde forem encontrados!”; “Todos os fraccionistas pagarão pelos seus crimes!”; “Eles queriam matar o camarada presidente”.
Neto, aliás, nunca escondeu a sua visão sobre o funcionamento do MPLA e do Estado: “Nós empreendemos uma ação no sentido de eliminar aquelas tendências que não se conformam com a linha política do MPLA. Estabelecemos uma ditadura e é debaixo dessa ditadura que nós vivemos. Não somos uma democracia burguesa em que cada um vem com a sua teoria para nos dizer aquilo que devemos fazer.”5
Eis como Neto descrevia a forma como ele e o grupo dirigente do MPLA se relacionaram com a divergência, no interior do partido, depois da independência: “E nós assistimos aqui desde o 11 de novembro a uma luta tremenda em que se foram eliminando um a um os grupos predominantes. Primeiramente foi o grupo que se chamava “Comités Henda”. Foi eliminado. Depois eram os Comités Amílcar Cabral. Foram eliminados. Apareceram depois alguns deles, indivíduos que pertenciam a esses dois grupos, apareceram numa outra organização chamada OCA – Organização Comunista de Angola e também foram eliminados.”6
A tendência “nitista” foi a última a ser exterminada. A forma ultraviolenta como se deu essa “eliminação” causou uma ferida profunda na sociedade angolana. E teve como efeito espalhar o terror e provocar mais de 30 anos de silêncio. Depois de Agostinho Neto, José Eduardo dos Santos manteve o “tabu” sobre o assunto.
João Lourenço reconhece violações dos direitos humanos
João Lourenço, sucessor de Eduardo dos Santos, só mudaria esta orientação do “tabu” em 2018, quando pela primeira vez o seu governo reconheceu num documento oficial do Ministério da Justiça que, após o “27 de maio”, registou-se um “cortejo de atentados aos Direitos Humanos”. Por sua iniciativa, foi formada uma comissão para implementar um Plano de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos.
A iniciativa, que poderia ser positiva se seguisse o modelo, por exemplo, da Comissão da Verdade sul-africana, corre, porém, o risco de se tornar um mero expediente para pôr uma pedra sobre o assunto sem o esclarecer. Isto porque o atual governo angolano tem demonstrado uma estranha interpretação de quem são as vítimas do 27 de maio.
Numa entrevista recente ao Jornal de Angola, o ministro da Justiça, Francisco Queiroz, fala como se existisse uma simetria entre os mortos e desaparecidos, por um lado, e os que deram as ordens de os matar e fazer desaparecer, por outro. No 27 de maio teria havido “um erro político histórico por parte de entidades políticas que contestaram e atentaram contra o regime estabelecido”, que provocou um outro erro político “cometido pelas entidades políticas detentoras do poder”. Estas “tomaram medidas” que constituíram “uma má gestão da crise”. “Ambos erros geraram vítimas e ambos erros são condenáveis”, diz o ministro. A conclusão é lapidar: “Toda a nação foi e é vítima. Quer do lado ativo, quer passivo, são todos vítimas. As que cometeram o erro de desestabilizar o regime ou atentar contra ele e as que do lado do poder instituído cometeram o erro de não medir as consequências da má gestão da crise. As vítimas são os que morreram num e no outro lado, os que sofreram com o medo, incertezas e todo aquele clima que se gerou”.
Todos vítimas?
Em palavras simples, sem subterfúgios: na opinião do ministro da Justiça de Angola, são tanto vítimas os carrascos de milhares de angolanos e angolanas, quanto os assassinados desaparecidos e os seus familiares e órfãos. A reconciliação seria assim entre as vítimas dos dois lados, e portanto “não valeria a pena” levantar questões do tipo ‘quero conhecer quem matou, quem provocou o medo...’ com espírito revanchista. Isso pode levar a ódios e contra-ataques do mesmo tipo.”
Toda a argumentação do ministro baseia-se no episódio que serviu de pretexto para o apelo ao assassinato indiscriminado: a morte dos seis dirigentes do MPLA e membros do governo já mencionados, que teriam sido assassinados pelos “nitistas”. Trata-se de um episódio controverso e que suscita dúvidas e questionamentos sobre a real autoria dos crimes. Mas mesmo que a responsabilidade das mortes fosse efetivamente dos dissidentes, nada justifica o que se seguiu. A morte de seis pessoas não justifica a execução extrajudicial de 8 a 30 mil. Muito menos a violação dos mais elementares direitos humanos.
Quais as condições para a verdadeira reconciliação?
Para que de facto se sare a ferida aberta desde 1977, o pior que se poderia fazer seria passar uma borracha sobre o passado. Quando estão envolvidos milhares de cadáveres, milhares de órfãos e familiares, não se pode dizer simplesmente “todos são vítimas”. Só se pode sarar a ferida, fazer uma verdadeira reconciliação com a verdade. E a verdade passa, pelas exigências dos órfãos e familiares dos desaparecidos angolanos, agrupados na Plataforma 27 de Maio, resumidas nestes cinco pontos num documento divulgado justamente no dia 30 de agosto deste ano:
“1. A elaboração de uma lista de pessoas desaparecidas;
2. A localização, realização de testes de ADN e a devolução dos seus restos mortais às suas famílias;
3. A busca da verdade relativamente aos crimes cometidos;
4. A identificação dos responsáveis, que não podem ser considerados “vítimas” com a alegação de que responderam a ordens;
5. O respeito pelas recomendações da União africana (UA) e de outras instâncias internacionais neste sentido.”
“Pretende-se, assim”, explica a Plataforma, “devolver a dignidade e o bom nome às vítimas destes acontecimentos assim como às suas respetivas famílias”.
Notas:
1Artigo 2º da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra Desaparecimentos Forçados
2O Brasil tinha, em 1984, ano em que se considera ter acabado a ditadura, 132,4 milhões de habitantes.
3Mabeko-Tali, Jean-Michel, “Guerrilhas e Lutas Sociais – O MPLA perante si próprio (1960-1977). Ensaio de História Política”, Lisboa, Mercado de Letras Editores, 2018, pp. 603-604.
4Discurso de Agostinho Neto publicado no Jornal de Angola de 29 de maio). Citado por Leonor Figueiredo no livro “Fraccionismo – Quem disse o quê no ‘Jornal de Angola’ antes e depois do 27 de maio de 1977”
5Discurso à delegação do PAIGC e governo de Cabo Verde, 9 de junho de 1977. Citado por Leonor Figueiredo no livro “Fraccionismo – Quem disse o quê no ‘Jornal de Angola’ antes e depois do 27 de maio de 1977”
6Discurso de dia 12 de julho de 1977, publicado no JA de 14 de julho. Citado por Leonor Figueiredo no livro “Fraccionismo – Quem disse o quê no ‘Jornal de Angola’ antes e depois do 27 de maio de 1977”.
