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Andar seguras nas nossas cidades. É pedir muito?

Precisamos de começar a pensar em cidades mais inclusivas. O movimento do urbanismo feminista reivindica que, quando uma cidade é pensada para e por mulheres, ela realmente se torna mais justa e acessível a todos.

Há um movimento que tem vindo a crescer cada vez mais no ativismo feminista e esse movimento é o urbanismo feminista. O Urbanismo feminista é a preocupação e procura constante de condições para que haja equidade no acesso à cidade e às oportunidades dentro deste meio urbano, é um movimento social que procurar tornar a cidade mais segura e pensada para toda a gente. Este movimento reconhece que as cidades não são espaços neutros. Estas foram construídas e planeadas maioritariamente por homens e com os valores desta sociedade patriarcal e que, por isso, hoje em dia, as cidades são lugares que contribuem e perpetuam a opressão machista.

As mulheres ainda experienciam a cidade com um conjunto de barreiras físicas, sociais e económicas que têm um impacto muito profundo na nossa vida quotidiana. Esta perspetiva de género da cidade é importante porque é a perspetiva e a experiência de mais de metade da população. Uma cidade feminista tem que ter em conta a questão do cuidado, isto é, quem cuida da nossa sociedade. Quem ocupa maioritariamente os trabalhos de limpeza? As mulheres. A quem cabe a tarefa de cuidar dos mais idosos e das crianças? Às mulheres. Quem é que durante esta pandemia foi o rosto de cuidados de saúde ou em supermercados para que nada nos faltasse? Maioritariamente, as mulheres.
É também a elas que cabe apanhar os primeiros transportes da manhã e os últimos da madrugada.

Várias pesquisas feitas sobre os deslocamentos das mulheres, a nível mundial, demonstram que as mulheres têm uma percentagem superior de uso de transportes públicos e que se deslocam mais a pé do que os homens e enquanto a rotina mais comum de deslocação para os homens é casa - trabalho, a das mulheres, para além do trabalho, passa muito por uma série de atividades em que a sociedade lhes atribui e espera delas, como ir ao supermercado, lojas, ir buscar os filhos às escolas, centros de saúde, farmácias, etc.

Se prestarmos atenção, conseguimos ver explicitamente as relações entre o patriarcado e o capital nas cidades, nos diversos espaços em que habitamos e como todos esses espaços são concebidos para colmatar as necessidades do sujeito masculino juntamente com a exploração económica. É essa junção de fatores que promoveu a exclusão das mulheres do espaço urbano.

Outra questão essencial, para que as cidades se tornem um lugar melhor para as mulheres, é a questão da segurança. Segundo um trabalho publicado pelo jornal “Público” de Espanha, cerca de 85% das mulheres têm medo de voltar para casa sozinhas a pé durante a noite, e é muito comum durante esse percurso partilharem com amigos e familiares a descrição do lugar onde se encontram via SMS ou chamada telefónica ou, ainda, compartilhar a localização em tempo real através de aplicações. Segundo a ONG Plano Internacional, quatro em cada cinco mulheres já sofreram assédio sexual nas ruas. Apesar do assédio nas ruas ser uma das práticas mais normalizadas pela nossa sociedade, no que toca a violência contra mulheres, é das coisas mais presentes na nossa vida. Segundo os dados que a Agência de Direitos Fundamentais da União Europeia recolheu em 2012, uma em cada duas mulheres reconhece evitar certos lugares e situações a andar na rua sozinha por medo de abusos físicos ou sexuais.

Há uns tempos, lia um artigo sobre este tema, em que uma rapariga de apenas 20 anos dizia ter optado por não ir mais a festas noturnas ou reduzir ao extremo essa atividade após ter sofrido várias agressões depois de o ter feito. Diz não conseguir suportar o peso e o medo de que essas agressões possam voltar a acontecer. As consequências sociais, mas, especialmente, psicológicas deste medo sentido pelas mulheres são basilares. No final das contas, estas limitações traduzem-se num controlo social indireto sobre as mulheres, porque, quando evitamos nos deslocar a pé ou de transporte publico para evitar ser assediadas, é uma forma de controlo da sociedade sobre a mulheres.

Posto isto, precisamos de começar a pensar em cidades mais inclusivas. Este movimento reivindica que quando uma cidade é pensada para e por mulheres ela realmente se torna mais justa e acessível a todos. Por exemplo, o passeio que é demasiado curto para uma mãe passear o seu filho num carrinho de bebé, também o é para que uma pessoa que utiliza cadeira de rodas. Uma cidade mais iluminada durante a noite e com mais alternativas de percursos seguros, não se tornam apenas mais seguras para as mulheres, tornam-se para toda a gente. Nós temos de começar a incluir estas pessoas nas nossas cidades. Raramente pensamos nelas na hora de planear e melhorar a cidade, raramente as ouvimos e por isso está também na hora de as incluir nesta discussão e visão de cidade, porque uma boa cidade é aquela que serve a toda a gente. É possível atingir este objetivo e esta cidade inclusiva. Cada decisão de planificação política deve de o ter em conta, pois só assim conseguiremos atingir a igualdade social.

É preciso melhorar as nossas ruas, é preciso que haja mais iluminação por toda a cidade. Seria bom permitir que durante a noite que os passageiros pudessem sair em lugares seguros e fora dos pontos de paragem comuns e, ainda também, que o custo das viagens fosse reduzido, tendo em conta que quem mais usufrui de transportes públicos são as mulheres que também ganham menos na sociedade e, por isso, são mais precárias.

Há também muito a fazer por exemplo no acesso à habitação por parte de mães solteiras, ou ainda uma rede maior de creches públicas que consiga suportar todas as necessidades dos munícipes e não onde se acumulem nomes de crianças em listas de espera onde, por norma, é a mãe que tem de fazer malabarismos na sua vida diária para conjugar o cuidado da criança e conseguir trabalhar e, se não for ela, caberá à avó ou às tias o cuidado dessa criança, tirando, assim, também a essas mulheres, as suas horas de lazer.

Não queria terminar esta intervenção, sem apelar a que nos mobilizemos e que façamos esta luta juntas, nem sem lembrar todas aquelas que foram assassinadas ou violadas, quando só queriam chegar a casa depois de um dia de trabalho. Todas aquelas que saíram para se divertirem com os amigos e nunca mais voltaram, por todas aquelas que abraçaram a sua mãe ou os seus filhos, sem saber que seria a última vez e que a cidade que reflete estes valores patriarcais seria a sua sentença de morte. Também por todas nós, que tivemos desde cedo de perder a inocência e viver num mundo onde levar as chaves no meio dos dedos à noite virou rotina, por todas nós que o coração acelera e o pânico se instala quando vemos alguém a vir na nossa direção no meio do escuro e do desconhecido. Lutemos por todas aquelas que já não estão, mas acima de tudo pelas que estão, mas não sabem até quando.

Intervenção na sessão de apresentação das candidaturas autárquicas de Vila Nova de Gaia.

Sobre o/a autor(a)

Mestranda em Comunicação Política na Faculdade de Letras do Porto, ativista feminista e dirigente do Bloco de Esquerda.
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