Na terça-feira, os ministros das finanças europeus aprovaram, em termos gerais, as propostas da Comissão Europeia relativamente à governação económica da União Europeia. Entre estas, encontra-se a criação do semestre europeu, que visa coordenar as políticas orçamentais dos países.
De acordo com a nova agenda de governação económica europeia, os Estados-membros deverão submeter à apreciação da Comissão Europeia as linhas da sua política orçamental (contidas no PEC) e das reformas estruturais que tencionarem implementar. Após a sua análise, a Comissão emitirá “recomendações”, com vista à “orientação” da elaboração dos orçamentos nacionais, que, independentemente dos debates nos parlamentos, continuarão sob o escrutínio de Bruxelas. Desvios de política orçamental que a Comissão considere colocarem em risco a estabilidade orçamental exigida serão motivo para um “alerta precoce”, um ralhete de Bruxelas que dará, depois, lugar a castigo, caso não sejam corrigidos.
A eficácia desse ralhete de Bruxelas é, de resto, uma das apostas fortes da reforma da governação económica europeia. Pretende-se não só que as sanções sejam mais duras (penalizações, para os países incumpridores, de até 0,2% do seu PIB), como que o sistema da sua activação seja mais automático, menos discricionário e dependente de um consenso entre os Vinte e Sete. A bem da prevenção de futuras crises de dívida.
A forma como a crise financeira se converteu numa crise de dívida soberana potencialmente letal para a zona euro evidenciou que a moeda única não é sustentável sem mecanismos de financiamento de dívida e de convergência orçamental. Contudo, as formas que estes mecanismos estão a assumir deixa-os muito longe do necessário objectivo de correcção das assimetrias geradoras de instabilidade dentro da zona euro, e muito perto do projecto neoliberal de isolar a política económica da deliberação popular.
Assim, em vez da emissão de dívida europeia, existe um fundo de resgate que, não só é incapaz de travar os ataques especulativos que tornam a sua intervenção necessária, como é um “cavalo de Tróia” que introduz a ideologia da austeridade.
Do mesmo modo, em vez de um orçamento europeu robusto e de uma harmonização da legislação laboral e das políticas sociais e fiscais preventiva do dumping social (a corrida para o fundo que advém da concorrência regulatória), vemos uma reforma das normas de convergência e disciplina orçamental que, apoiada na doutrina da moralidade da crise – no castigo dos “desleixados” como medicina preventiva para todos os males futuros –, é mais uma forma de impor a austeridade como inevitabilidade e de salvaguardar essa imposição do escrutínio democrático.
Se a nossa cultura democrática nos leva a erguermo-nos contra a perda de soberania latente a uma intervenção externa, devemos considerar de igual forma que um cenário em que este semestre europeu entre em vigor, situações como a da discussão do PEC 4 entre o governo e a Comissão Europeia, antes da sua apresentação na Assembleia da República, serão a regra e não a excepção.
O sentimento de desrespeito pela soberania popular, espoletado pela forma da imposição, não só deste PEC 4, mas também de todos os pacotes de austeridade que foram desgastando, até ao limite, o contrato social que legitimava este governo PS, deve servir-nos, esse sim, de “alerta precoce” para os contornos que vai tendo a reconfiguração pós-crise da União Europeia; deve motivar-nos para construir, divulgar e tornar central um discurso forte sobre a (fundamentalíssima) questão europeia.
