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Afinal, as crianças não votam

A par da necessidade indiscutivelmente urgente de um debate sério sobre a proteção à infância e sobre a definição do que se entende por superior interesse da criança, importa também que a proteção à infância seja encarada como uma prioridade na agenda política.

A intervenção social na área da proteção à infância será seguramente uma das áreas em que a tomada de decisão constitui uma das tarefas mais desgastantes e exigentes, quer do ponto de vista emocional, pois as escolhas que se fazem podem trazer consequências devastadoras para a vida de outros, como do ponto de vista cognitivo, dada a quantidade de informação a tratar e a habitual complexidade das situações. Os profissionais da área da proteção à infância trabalham frequentemente em ambientes hostis e stressantes e são convocados, quase quotidianamente, a tomar importantes e complexas decisões baseadas em informação muitas vezes incompleta e imprecisa, num espaço de tempo limitado por prazos rígidos e em que não existe uma clara evidência da forma correta e ideal de atuação. Decidem-se procedimentos, caminhos a percorrer e em última análise, decidem-se vidas.

Mas tomar decisões no contexto da proteção à infância implica também encontrar o equilíbrio entre vários interesses, direitos e necessidades. Trata-se de situações que, na maior parte das vezes, opõem os direitos da criança a ser protegida, a ver satisfeitas as condições que assegurem o seu desenvolvimento harmonioso e a crescerem num ambiente familiar afetivo e securizante e os direitos dos pais à privacidade da vida familiar e a educarem e cuidarem dos seus filhos sem intervenção de terceiros.

Não é de admirar portanto, que quando ocorrem situações de confronto destes interesses e direitos, se dividam as opiniões, se formulem acusações e, se tomem posições, na maior parte das vezes baseadas em informação insuficiente e pouco precisa.

Nesta equação devem contudo ser tidos em conta alguns factos importantes. As Comissões de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (CPCJ) só podem atuar com o expresso consentimento dos pais e da criança maior de 12 anos. As medidas de promoção e proteção aplicadas pelas CPCJ obedecem a prazos definidos pela Lei e são inicialmente estabelecidas por períodos de 18 meses. Durante este período, as famílias são intervencionadas no sentido de se trabalharem competências, alterarem comportamentos e ultrapassarem as situações que colocaram as crianças em risco ou perigo e que justificaram a intervenção dos serviços. De referir ainda que as crianças não são retiradas às famílias por motivo exclusivo de insuficiência económica. As problemáticas associadas a estes casos são, invariavelmente, multicausais. Quando a criança é retirada do seu seio familiar, existem invariavelmente outros tipos de problemas associados, desde o alcoolismo à toxicodependência, incapacidade parental, negligência e, apesar dos relatórios indicarem uma diminuição destes problemas nos últimos anos, começa recentemente a verificar-se uma nova recrudescência de comportamentos violentos, desde a violência doméstica aos maus tratos físicos e psicológicos à criança. Assente, tem de ficar a ideia de que a criança só é retirada à família quando a sua permanência na casa familiar constitui perigo efetivo ao seu harmonioso desenvolvimento e/ou à sua integridade física.

As recentes posições e opiniões que pulularam em blogues e redes sociais relativas ao caso da mãe a quem foram retirados sete filhos ou às duas crianças encontradas mortas dentro de um carro abandonado, são prova suficiente da necessidade de um debate urgente sobre a proteção à infância e sobre a definição do que se entende por superior interesse da criança, princípio básico orientador da intervenção nesta área. Se o superior interesse da criança passa pelo direito a crescer no seio da sua família independentemente das condições que lhe sejam proporcionadas, se passa pelo direito a proteção especial quando essas condições não se verificam e o que é que essa proteção implica.

Quero ainda deixar claro, que a proteção da criança quer implique ou não a sua retirada da casa familiar, não deve significar o desinvestimento na família e a oferta de todos os meios e recursos disponíveis para que ultrapassem as suas dificuldades, sabendo nós, que atualmente esses meios são manifestamente insuficientes. Cabe equacionar contudo, quanto tempo deve a criança esperar por esta «recuperação». Quanto tempo podem esperar os seus direitos? Quanto tempo é o tempo útil de uma criança?

A par da necessidade indiscutivelmente urgente de um debate sério sobre estes assuntos, importa também que a proteção à infância seja encarada como uma prioridade na agenda política, que as comissões de proteção à infância sejam investidas de profissionais especializados e não dependam do empréstimo a meio tempo ou a 30% do tempo de outros serviços do estado social, que a formação especializada seja obrigatória para todos os que trabalham nesta área, que meios e recursos sejam disponibilizados, que o carácter de urgência dos processos de proteção à infância seja efetivamente aplicado, que a morosidade dos tribunais não possa ser elemento contributivo da desproteção das crianças, por vezes com consequências trágicas.

Sei o suficiente para perceber contudo, que para que as crianças passem a ser uma prioridade social e merecedoras de investimento político, este governo tem de cair. A Pedro Passos Coelho, aos ex-administradores de instituições bancárias e financeiras que agora povoam o governo, e até ao Ministro da Solidariedade e da Segurança Social, Pedro Mota Soares, pouco importam as criancinhas. Afinal, as crianças não votam.

Sobre o/a autor(a)

Feminista e ativista. Socióloga.
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