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ADSE: bem me quer, mal me quer...

A ADSE está debaixo de fogo cruzado, atravessada por uma controvérsia intensa, apaixonada, inflamada.

De um lado, os que querem acabar com ela porque não querem o estado a pagar privilégios ilegítimos aos funcionários públicos, ainda por cima quando se trata de financiar uma dupla cobertura de saúde. Se há SNS para todos, a ADSE é um luxo supérfluo, dizem.

De outro lado, os que também querem o fim da ADSE mas por razões bem diferentes: não aceitam que ela seja o garante da sobrevivência e dos lucros chorudos dos grandes grupos privados da saúde. Acusam a ADSE de alimentar o boom dos hospitais privados e, em consequência, de provocar a asfixia e destruição do SNS.

E, finalmente, aqueles que dizem que se trata de um direito adquirido desde 1963 – ano de criação da ADSE – e inteiramente legítimo porque recompensa os funcionários públicos da situação desfavorável em que se encontram relativamente aos trabalhadores das empresas privadas.

Desde 2014 a ADSE é exclusivamente financiada pelas contribuições dos seus beneficiários e, portanto, não pode falar-se em privilégio, é um serviço exclusivamente pago por quem dele beneficia. Mais, há diversos estudos que demonstram não ser difícil manter este equilíbrio e, assim, garantir durante várias décadas uma ADSE sem necessitar de um cêntimo do estado.

É verdade, sem qualquer dúvida, que os maiores beneficiados com a ADSE são os grandes hospitais privados e, de um modo geral, toda a medicina privada. Mas, muito mais beneficiam com os pagamentos do SNS em convenções, contratos e acordos, que todos os anos custam quatro a cinco vezes mais do que o valor total pago pela ADSE, direta e indiretamente, aos prestadores privados. E não é por isso que o SNS vai, de um dia para o outro, deixar de recorrer aos privados, isso seria o caos no Serviço Nacional de Saúde.

É muitíssimo compreensível a preocupação com que se assiste ao efeito de aspiração que os privados hoje exercem sobre o SNS. Há uma fuga de profissionais para os privados atraídos por melhores condições. O SNS encaminha-se para ser um deserto, se nada se alterar muito rapidamente. Mas não me parece aceitável que, para resolver este problema e entravar o crescimento da medicina privada, se deva prejudicar e castigar os funcionários públicos. Até porque isso seria temporário e ilusório: extinta a ADSE, grande parte dos seus associados iria a correr subscrever um seguro de saúde. E só há seguradoras privadas. A extinção da ADSE seria uma “festa” para as seguradoras: 1.300.000 cidadãos a “aterrar” no mercado dos seguros de saúde....

Sabendo-se dos problemas do SNS, não é difícil perceber que, num país em que todos os cidadãos podem aceder a ele, haja tanta gente a desejar ter ou manter uma dupla cobertura no domínio da saúde. E a verdade é que há e não são apenas os beneficiários da ADSE. São também os mais de dois milhões de portugueses com seguro de saúde, tão segunda cobertura como a ADSE. E, no entanto, não se ouve ninguém a criticar esta situação. Percebe-se porquê: sai do bolso dos segurados e apenas do seu bolso. Então e se a ADSE for, como já é, paga exclusivamente pelos seus beneficiários, qual é a diferença, onde está o motivo de crítica? Pura e simples manifestação de racismo social contra os funcionários públicos.

Há uma mudança indispensável: a ADSE não deve depender de qualquer financiamento do estado. Mas isso não pode significar a entrega aos privados do “negócio” da saúde dos funcionários públicos, o que inevitavelmente acontecerá se a ADSE evoluir para um seguro de saúde ou para uma mútua. No primeiro caso, a privatização é imediata; no segundo, é uma questão de tempo.

Defendo que a ADSE se mantenha no domínio público, não como direção geral mas como instituto público, tutelado pelo Ministério da Saúde mas com plena autonomia financeira, gerido por representantes do estado e dos trabalhadores e tendo por objetivo, progressivamente, o fim da dupla cobertura.

Uma mudança desta dimensão e interessando potencialmente a um milhão e meio de portugueses, seja qual for o rumo das negociações entre governo e sindicatos, deve ser sujeita a referendo entre os funcionários públicos. Seria uma lufada de ar fresco na nossa administração pública...

Crónica publicada na revista Visão de 31 de março de 2016

Sobre o/a autor(a)

Médico. Aderente do Bloco de Esquerda.
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