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Tempo resistente

Transformar o 25 de Abril numa espécie de 10 de Junho é uma forma de esquecer a revolução. Os 40 anos do 25 de Abril devem ser um pretexto para recordar a queda da ditadura mas também o profundo processo de transformação social que ocorreu de seguida.

É previsível que o 25 de Abril se torne em lugar de disputa política no momento em que passam 40 anos sobre o derrube da ditadura do Estado Novo. É normal e até inevitável que assim seja. A memória é um campo de batalha onde as interpretações da história e as relações de poder se entrelaçam com o objetivo de disputar a hegemonia sobre as leituras do passado.

As notícias que têm surgido sobre as propostas de comemoração oriundas da Assembleia da República vão, no entanto, um pouco mais além. Assunção Esteves propôs que os 40 anos do 25 de Abril fossem suportados financeiramente ao abrigo do mecenato comercial, proposta que viria a ser retirada antes de podermos imaginar os estranhos objetos promocionais a que daria lugar. A ideia é populista – basta pensar que em 2012, por exemplo, a Assembleia da República gastou pouco mais de 5.000 euros nas comemorações – mas é tudo menos inocente. É preciso colar o 25 de Abril ao “Estado gordo” que, no fundo, teria tido a sua génese nessa orgia de direitos conquistados.

Uma outra ideia surgida da mesma fonte passava por encomendar a Joana Vasconcelos uma intervenção artística que envolvesse cravos e chaimites. A artista, entretanto, já disse não ter tempo para executar a tarefa. A JSD, por seu turno, tem em curso uma campanha que liga as comemorações do 25 de Abril à queda do Muro de Berlim, ativando a estafada ligação do 25 de Abril ao combate ao totalitarismo comunista e rasurando as dimensão socialista e emancipatória da revolução. Teremos assim, nos próximos tempos, os nossos jotas laranjas a gritar pelas ruas “Liberdade!” sem se preocuparem muito em perceber o que foi o 25 de Abril ou em terem sequer na cabeça o refrão daquela música de Sérgio Godinho que explica como é que a liberdade se efetiva. Basta-lhes a ideologia e a vontade atrevida de explorar o anacronismo histórico.

Mas têm vindo do PS as propostas mais descabidas. Maria de Belém propôs que os deputados fossem dar sangue. Já esta semana, foi a vez de Marcos Perestrelo defender que se realizasse uma grande parada militar da Avenida da Liberdade até ao Terreiro do Paço porque, nas suas palavras, "o 25 de Abril foi um golpe militar e portanto o que há a fazer é homenagear os militares que o fizeram". Pouco interessa que o 25 de Abril não tenha sido feito por todos os militares e que o processo desencadeado pelo golpe tenha originado, na verdade, a transformação da hierarquia castrense numa outra coisa, diluída no povo. Transformar o 25 de Abril numa espécie de 10 de Junho é uma forma de esquecer a revolução.

Os 40 anos do 25 de Abril devem ser um pretexto para recordar a queda da ditadura mas também o profundo processo de transformação social que ocorreu de seguida. Para se pensar nas mulheres e homens que tomaram nas mãos o seu destino, frequentemente pela primeira vez, questionando as figuras históricas da opressão – do patrão ao cacique local. Para se refletir sobre uma guerra colonial sangrenta que encontraria aí as condições para o seu fim. Para se identificarem as mudanças sociais operadas ao nível da economia ou dos costumes, da política ou da cultura, da saúde ou da educação. Para se produzir reflexão historiográfica sobre o acontecimento e o seu enquadramento nas dinâmicas nacionais e internacionais da época.

Mas será um momento propício para pensarmos também em conjunto sobre as promessas que ficaram por cumprir e o diálogo possível entre esse passado e o nosso presente. Como escreveu um dia Ary dos Santos, “o que é preciso é ter sempre presente / que o presente é um tempo que se vai / e o futuro é o tempo resistente”. Sem passadismos bacocos, mas com consciência histórica, é importante pensarmos o que há de futuro nesse processo fundador da nossa democracia. Vendê-lo a empresas, pôr os representantes políticos a dar sangue ou transformar o 25 de Abril num momento de exaltação militar são, a este respeito, formas pouco subtis de contornar o elefante no meio da sala.

Sobre o/a autor(a)

Historiador, doutorado em História, investigador do CES/UC.
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