O Bloco não passa com a idade

porJosé Soeiro

30 de March 2014 - 3:02
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Ao contrário do que declara o Luís Osório, o Bloco não morreu. Está mesmo muito vivo. É só preciso estar atento e libertar a cabeça de preconceitos.

Há dias encontrei na sede do Bloco uma foto antiga. Era uma conversa de café no Piolho, na primeira campanha que fizemos, 1999. Nela estava o Manuel António Pina, que na altura era mandatário aqui no Porto, o Miguel Portas, que era o cabeça de lista e a Maria de Lourdes Pintasilgo, que participou à época em várias iniciativas. Lembro-me bem desse momento. No dia em que descobri a foto, partilhei-a no Facebook e escrevi, a propósito, que estes 15 anos de Bloco de Esquerda são também de todas essas pessoas que, em momentos diferentes, foram deitando sementes à terra. Na caixa de comentários do Facebook, um amigo perguntou-me se eu não era demasiado novo para a nostalgia. Fiquei a pensar. “Não é nostalgia”, respondi-lhe, “é reconhecimento”.

De facto, não sou dado à nostalgia. Não tenho nada contra o passado e prezo muito a memória. Mas gosto sobretudo da vida que é agora, porque é a que vivemos. Gosto do risco e da esperança como lugar do novo. Gosto do que ainda não existe. Não gosto de quem olha para trás idealizando o passado e acho perigosa a pulsão de retocá-lo. Acima de tudo, chateia-me quando alguém justifica com o passado a sua visão cínica sobre o presente: “eu também já fiz isso, mas passou-me”. Acho normal que as pessoas desistam das coisas – nenhum de nós pode antecipar o que vai sentir daqui a um tempo. Mas não acho normal que olhem o resto do mundo a partir da sua desistência.

Quando me dizem, por exemplo, “isso passa com a idade” (quem nunca ouviu isto?), sei que essa frase, que supostamente enuncia uma lei geral sobre o curso do mundo, da vida e das gerações, na verdade só nos fala sobre quem a pronuncia. Cada vez mais me parece que, quando alguém nos diz “isso passa com a idade”, está apenas a falar de si (e muitas vezes, não duvido, com uma genuína saudade de si próprio).

Foi isto que senti ao ler o texto do Luís Osório na Tabu, que tinha como título “O Bloco morreu”. Gosto do que o Luís escreve, guardo na memória algumas belas entrevistas que vi feitas por ele e não esqueço a cordialidade com que várias vezes me recebeu no Rádio Clube, que aliás era mesmo em baixo da casa onde morei em Lisboa. Mas quando o Luís fala do PSR, das noites que passou a dobrar jornais ou dos jantares no Palmeiras, do brilhantismo do Louçã, do Rosas ou do Miguel Portas, e quando diz que tudo isso despareceu, parece haver só saudade. Alguma melancolia, a sua descrença, em expansão. E saudade.

Quando eu comecei a dobrar jornais, a jantar no Palmeiras ou quando conheci o Chico, já o Luís Osório se tinha deixado dessas andanças. Nunca fui do PSR, nem de nenhum dos partidos que existiram antes do Bloco. Nesse sentido, não sou “do tempo” do Luís. Mas sei do que fala quando fala em poesia, nessa fome de transformação, na força das palavras ou na descoberta do marxismo heterodoxo. Não é um passado que morreu. Pelo que me toca, senti-as recentemente em muitos momentos.

Senti-as, por exemplo, quando, no passado mês de setembro, enchemos o teatro municipal cá no Porto numa “noite Rivolivre” para virar a cidade ao contrário. Mas senti-as também quando estive, numa madrugada de janeiro, num improvável piquete de greve, onde aprendi o exemplo e a coragem das enfermeiras da Linha Saúde 24 que, a falsos recibos verdes e sem qualquer vínculo (ou seja, sem contrato e por isso sem terem formalmente direito a qualquer negociação ou ao reconhecimento de formas de luta, incluindo a greve), pararam a linha para defenderem aquele serviço, o seu salário mas sobretudo a sua dignidade. Senti-as neste fim de semana, quando estive com a Fabíola Cardoso em Braga, num debate em que explicou, com uma força que não sei de onde vem, a importância de mães lésbicas, como ela, darem a cara, porque ao darem a cara o preconceito não há-de resistir ao confronto com este facto banal: as famílias que o Parlamento teima em não reconhecer, como a dela, são feitas exatamente da mesma matéria que faz qualquer outra família. O amor.

Essa fome, essa força ou essa descoberta de que o Luís tem saudade tenho-as sentido, ainda, ao ler o último livro, lançado agora, do Daniel Bensaïd, um dos mais empolgantes filósofos contemporâneos. Em diálogo com pensadores como Nietzsche, Walter Benjamin, Freud, Gramsci, Derrida ou Marcuse, Bensaïd resgata o pensamento de Marx do determinismo histórico, das degenerescências burocráticas, do positivismo científico, da política autoritária, para afirmar a sua intempestividade e para fazer o balanço das grandezas e misérias dessa admirável aventura crítica que são os mil marxismos contemporâneos.

Essa noite Rivolivre, o encontro com as enfermeiras e os enfermeiros da Saúde 24, o ser amigo e camarada da Fabíola, o ter contactado com os escritos do Bensaïd aconteceram porque o Bloco de Esquerda existe. Agora. Como este espaço de encontro e também como voz insubmissa lá onde as decisões se tomam. Há poucas semanas, no Parlamento, os deputados do Bloco viraram as costas a Passos Coelho quando este fez uma birra com a Catarina Martins e decidiu que não tinha nada que responder perante a Assembleia. Como a tanta gente, essa atitude deu-me orgulho. Gosto da esquerda exigente que o Bloco é. Agora.

Lembro-me do Bloco desde o início. Sempre houve diferenças, arrufos, gente que entrava e saía, confusões, discussões acaloradas. Desde o início, houve debates, divergências, diversidade de culturas políticas. Sei que há quem não goste. Mas no Bloco isso não é defeito. É feitio. Admito que nem sempre fizemos tudo bem e em alguns casos, olhando para trás, sinto que eu também teria feito diferente. Mas a aprendizagem da política é isso mesmo: a importância do confronto, das escolhas, a naturalidade do conflito, a relevância de termos um projeto estratégico que vá para além da espuma dos dias.

É isto o Bloco, ontem como hoje, estas escolhas. Na renegociação da dívida e no combate à austeridade, nos direitos das minorias e no combate às discriminações, na defesa dos serviços públicos ou na renovação das lutas do trabalho, o Bloco distingue-se na esquerda quer do sectarismo e da ortodoxia quer da desistência e da capitulação. O Bloco criou rotinas e confronta-se com o risco da acomodação? Certamente. É uma organização imperfeita? Claro, como cada um de nós. Mas abanou a política portuguesa e hoje, perante a ditadura dos mercados, o conformismo ante a finança, a espreita do nacionalismo, a confusão, a falta de ideias, o Bloco é ainda mais indispensável. É por isso que, ao contrário do que declara o Luís, o Bloco não morreu. Está mesmo muito vivo. É só preciso estar atento e libertar a cabeça de preconceitos.

 


Uma versão mais curta deste artigo foi publicada na edição do jornal "Sol" na passada sexta-feira.

José Soeiro
Sobre o/a autor(a)

José Soeiro

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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