You are here

Do prato para o automóvel

A Diretiva de Energias Renováveis da UE implica, na prática, retirar comida do prato dos mais pobres do planeta para encher os depósitos dos automóveis nos países industrializados.

Como todas as economias avançadas, a União Europeia depende da importação de petróleo para o funcionamento do seu sistema de transportes, largamente baseado no transporte individual. Para reduzir a dependência face ao petróleo, a Diretiva de Energias Renováveis determina que, até 2020, 10% das necessidades energéticas no setor de transportes deverão ser satisfeitas com fontes renováveis. Na prática, isto implica usar cada vez mais combustíveis produzidos a partir de matéria vegetal, retirando comida do prato dos mais pobres do planeta para encher os depósitos dos automóveis nos países industrializados.

Expandir a produção de agrocombustíveis implica converter áreas crescentes de cultivo em países do Sul à produção de açúcar, palma ou outras matérias primas, reduzindo a área destinada ao cultivo de bens alimentares. Consequentemente, o preço dos bens alimentares aumenta, agravando a fome no mundo. Como as pessoas continuam a precisar de comer, novas áreas de cultivo de alimentos surgem onde antes estavam florestas, savanas ou zonas húmidas, destruindo ecossistemas ricos e agravando a crise climática que os agrocombustíveis supostamente aliviariam. As alterações no uso dos solos, diretas e indiretas, provadas pelos agrocombustíveis, são suficientes para que a sua contribuição para as alterações climáticas seja superior à do petróleo, quando considerado todo o ciclo de produção.1

Em 2012, 65% da produção de óleo vegetal na UE era já usada para a produção de biodiesel, um agrocombustível que é misturado com o gasóleo. Como resultado, as importações de óleos vegetais e sementes tem aumentado constantemente. Para garantir um fluxo de importações estáveis, vastas áreas de cultivo no Sul global são apropriadas por empresas europeias, sendo hoje a produção de agrocombustíveis a principal causa de apropriação de terras no mundo.2 Na África Subsahariana, uma das áreas mais pobres do mundo, seis milhões de hectares de terras foram apropriados para a produção de agrocombustíveis por empresas europeias entre 2009 e 2013.3

Face à evidência de que a produção de agrocombustíveis conduz a alterações no uso dos solos, a UE tem emendado a sua política energética de forma a impedir a importação de alimentos provenientes de áreas desflorestadas. Mas isto de nada vale quando a produção de agrocombustíveis leva a alterações no uso de solo indiretas, na medida em que obriga a que a produção de alimentos se expanda à custa da conversão de florestas e outras áreas naturais em plantações. De facto, estudos encomendados pela Comissão Europeia estimam em 4.5 milhões de hectares a expansão da área de cultivo que decorrerá da continuação da presente política europeia para os agrocombustíveis. Ou seja, para abastecer os carros europeus de agrocombustíveis, será necessário aumentar a área de cultivo no Sul global numa extensão do tamanho da Dinamarca.

Estes estudos recomendavam à UE a revisão das presentes estimativas de redução de emissões de gases com efeito de estufa resultantes do uso de agrocombustíveis, na medida em que estas estimativas não consideram o aumento de emissões que resulta de alterações do uso dos solos. Mas a Comissão Europeia ignorou por completo os estudos que tinha encomendado e tem persistido na mesma política desastrosa para o uso de energia nos transportes.4

A produção de combustíveis a partir de comida é um grande negócio, que mobiliza grandes empresas em múltiplos setores económicos: BP, Shell, Chevron, Exxon e Total (petróleo); Roche e Merck (farmacêuticos); Unilever, Cargill, DuPont, Monsanto, Bunge e Procter & Gamble (agroindústria); Dow e BASF (química). O exército dos EUA, um dos maiores consumidores de petróleo do mundo, também está fortemente envolvido.5 Não surpreende, portanto, saber que estudos científicos que expõem os problemas inerentes aos agrocombustíveis sejam atirados para debaixo do tapete.

Não há qualquer arranjo tecnológico ou truque contabilístico que possa fazer com que os agrocombustíveis possam ser uma solução mágica para despoluir um sistema de transportes baseado no automóvel. A solução para reduzir a poluição atmosférica nas cidades, a dependência face ao petróleo e as emissões de gases com efeito de estufa está na redução do uso do automóvel individual e não na mudança do combustível usado pelo automóvel. Investimentos em transportes públicos, programas de apoio à utilização da bicicleta, ruas pedonais, melhor planeamento urbanístico e repovoamento de centros urbanos desabitados, entre outras medidas para reduzir a necessidade do uso de automóvel, são alternativas mais viáveis, mais ecológicas e melhores para a qualidade de vida das pessoas.


2 W. Anseeuw et al, “Land Rights and the Rush for Land Findings of the Global Commercial Pressures on Land Research Project”, The International Land Coalition: Rome, 2012, pp.24-25.

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
Comentários (1)