You are here

Direitos de maternidade versus direitos do trabalho

Combater a discriminação não passa por reduzir a licença de maternidade ou retirar quaisquer direitos às mulheres.

Pontualmente na comunicação social, e em particular nas revistas ditas femininas ou de auto-ajuda, vão surgindo artigos sobre a maternidade em geral e a licença parental em particular. Na sua maioria estes artigos contestam o direito à licença de maternidade com base na auto-estima das mulheres e na defesa das suas carreiras. Por exemplo a última edição da revista Happy Women, que de acordo com a Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação ocupou, em 2013, o 5.º lugar na listagem das revistas na rubrica de revistas femininas e de modas, à frente de publicações como a revista Maria e outros título mais enraizados na literatura de periódicos, publica um artigo que, por um lado, alerta para as representações sociais que as mulheres ainda fazem do seu papel de mãe e as pressões conjugais e familiares para a dedicação às crianças mas, por outro lado, aproveita para legitimar e ampliar o discurso sobre direitos de maternidade versus direitos do trabalho e a construção da carreira das mulheres. Neste artigo foi destacada uma caixa intitulada “Os prejuízos para a carreira” onde citam Isabel Meireles, diretora do Grupo Egor, especializado em consultoria, trabalho temporário e em outsourcing, que com as suas declarações comprova que para as empresas tornar-se mãe é colocar a carreira, e muitas vezes o emprego, em risco.

Se reconheço a importância de refletir sobre as dificuldades que algumas mulheres enfrentam na construção do seu modelo de ser mãe, em particular quando optam por um caminho diferente daquele que é considerado natural na nossa sociedade patriarcal, que nestes assuntos é particularmente conservadora, é também importante denunciar a falsa ligação entre a maternidade e as questões laborais. Primeiro, os problemas de saúde e de emancipação das mulheres só se enfrentam com políticas públicas de apoio à maternidade e equipamentos sociais de apoio à infância, que permitam escolhas livres e autónomas das mulheres como por exemplo regressar ao trabalho no momento em que entenderem.

A duração da licença de maternidade não é a causa dos problemas identificados nos testemunhos dados por mulheres às revistas, pelo contrário, muitas mulheres que cedem à pressão de regressar rapidamente ao trabalho relatam um aumento do stress e do sofrimento por anteciparem a separação dos filhos e vários outros tipos de problemas. Mas o que me parece mais importante frisar é que a decisão de usufruir ou não da licença de maternidade, e da duração da mesma, deve ser uma decisão individual das mulheres que deve ser tomada em liberdade e sem juízos de valor ou pressões familiares, do Estado ou da sociedade.

Sendo uma escolha individual das mulheres não posso ignorar que as opções de mulheres que ocupam cargos políticos e ou de direção de empresas têm um impacto público diferente, uma vez que as suas opiniões e as suas opções tendem a ser mais valorizadas que as ideias, os desejos e as necessidades da maioria das mulheres. Por exemplo, em Janeiro de 2009, a ministra da Justiça francesa, Rachida Dati, decidiu regressar ao trabalho apenas cinco dias após o parto. Esta decisão gerou um debate na sociedade francesa que girou em torno de posições misóginas e de discursos oportunistas que valorizavam a dedicação à carreira, e no caso, ao serviço público, aproveitando a imagem mediática de Rachida Dati para propor a limitação dos direitos de maternidade.

As sociedades evoluem e é um facto reconhecido que a entrada das mulheres no mundo do trabalho teve impactos muitíssimo positivos na autonomia das mulheres, na conquista de direitos e na desconstrução do mito da mulher-natureza, do mito da mulher-mãe. Mas, para esta entrada no mundo do trabalho também foi fundamental a conquista de direitos económicos e sociais e uma mudança social que passou a encarar como natural o duplo emprego dos casais e o emprego das mães e das mulheres em geral.

Sobre o tema da mudança o poeta Camões escreveu um soneto que versava:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.”

A mudança é uma constante da vida e se os indivíduos são livres de fazerem no seu quotidiano as mudanças que querem, ou as que podem uma vez que as limitações à liberdade são imensas e de várias ordens, a verdade é que enquanto sociedade procuramos promover a mudança coletiva de acordo com valores e princípios que nos orientam.

40 anos após o 25 de Abril temos por vezes dificuldade em reconhecer o Estado democrático de direito que conquistámos através da revolução, mas é um facto que a constituição portuguesa instituiu garantias fundamentais que procuram orientar a mudança social e o progresso coletivo no sentido da emancipação e o progresso da humanidade.

Enquanto indivíduos somos obrigados a cumprir um conjunto de deveres e temos a possibilidade de usufruir de um conjunto de direitos. As leis que nos impõem deveres e nos conferem direitos resultam da mudança e do progresso social e muitas vezes só processos de luta e de verdadeira conquista nos permitem gozar de certos direitos.

A Constituição portuguesa valoriza a maternidade e a paternidade como “valores sociais eminentes” e confere às mulheres direitos especiais de proteção durante a gravidez e após o parto. Determina também que as mães e os pais têm “direitos de dispensa de trabalho por período adequado, de acordo com os interesses da criança e as necessidades do agregado familiar.

Pessoalmente, o que me interessa é denunciar o aproveitamento ideológico que é feito ao associar o usufruto da totalidade da licença de maternidade às penalizações na carreira das mulheres como algo inevitável. Na verdade, uma ausência prolongada do trabalho pode significar perda de competências ou de conhecimentos ou ainda um período de adaptação que atualmente penaliza as mulheres. Na mesma medida em que o facto de as mulheres serem as principais responsáveis pelos filhos e filhas e outros familiares dependentes é visto como natural e como a razão pela qual as mulheres não podem dedicar tanto tempo ao trabalho e à carreira como os homens. Ambas as situações são injustas e não têm qualquer legitimidade para além daquela que nós, enquanto sociedade, lhe conferimos.

Combater esta discriminação não passa por reduzir a licença de maternidade ou retirar quaisquer direitos às mulheres. Medidas como o aumento da licença de paternidade e outras medidas de conciliação que promovam a partilha das tarefas domésticas e do cuidado com os filhos são um passo positivo na construção da igualdade. No entanto estas medidas não podem ser tomadas à custa dos direitos conquistados pelas mulheres e só por si não bastam.

Exigir direitos de maternidade e políticas públicas de apoio às famílias é a solução para garantir a livre escolha das mulheres para decidir como vivem e constroem o seu papel de mães. Voltando ao tema da mudança, o desafio que está colocado não é o regresso ao lar ou a perda de direitos mas sim encarar de outra forma a maneira como organizamos o trabalho e a vida familiar. O desafio da mudança é garantir direitos no sentido do progresso coletivo, da emancipação e o progresso da humanidade. O direito ao trabalho e os direitos de paternidade e maternidade não são contraditórios, pelo contrário complementam-se e têm que ser pensados em harmonia.

A nós enquanto sociedade cabe-nos exigir o máximo de direitos, e legislação que os suporte, e defender a liberdade de exercício dos mesmos no modo, no tempo e na medida em que cada um e que cada uma de nós desejar. E não é apenas às críticas à licença de maternidade que devemos estar alerta. O referendo na Suíça sobre a comparticipação pública da interrupção voluntária da gravidez, a proposta de lei Gallardón no Estado Espanhol, as tentativas de fazer retroceder os direitos sexuais e reprodutivos e outros direitos como por exemplo o casamento entre pessoas do mesmo sexo fazem parte da estratégia conservadora que acompanha as políticas de austeridade na Europa e no mundo. Em nome da inevitabilidade dos resgates e do pagamento das dívidas cortam-se salários e direitos e vai-se mais longe numa tentativa de destruição de conquistas sociais e do Estado social.

Sobre o/a autor(a)

Licenciada em Relações Internacionais. Ativista social. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
(...)