Do sucesso, das aflições e das lições de dois tiranetes

porFrancisco Louçã

04 de September 2023 - 9:51
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Algumas das razões para as oscilações nas lideranças na América Latina podem ser medidas por dois exemplos de tiranos, o de Salvador, Nayib Bukele, e o da Nicarágua, Daniel Ortega.

Há dezenas de anos acompanhei de perto os processos de mobilização popular e de mudança constitucional nas ruturas com as ditaduras militares latino-americanas que, do Brasil, Uruguai e Paraguai ao Chile e Argentina, tinham dominado o continente. Vi as esperanças empolgadas. Com as particularidades da história de cada país, esses movimentos conjugaram-se numa vaga democrática e tomou a forma de Governos progressistas diferentes mas apoiando-se entre si, com Lula, Correa, Lugo, Chávez, Morales. Essas coincidências temporais são frequentemente ilusórias, como é bem sabido, dado que os ciclos políticos vão sendo mais curtos e dramáticos. Chávez morreu, Lula foi preso e só inocentado anos depois, Correa exilou-se, Morales demitiu-se numa crise política. A extrema-direita passou a governar o Brasil com Bolsonaro e o liberalismo mais agressivo dominou a Argentina com Macri. E, depois, nova reviravolta: Boric ganhou no Chile, Petro na Colômbia, Lula voltou ao Planalto. E mais outra, o carrossel acelera: a proposta de Constituição pós-Pinochet foi chumbada no Chile e eleita uma nova câmara com maioria de direita radical; um candidato que se diz anarcocapitalista e pretende encerrar a saúde e a educação públicas parte com vantagem na corrida presidencial argentina; mas na Guatemala foi eleito um presidente de centro-esquerda e no Equador a disputa é entre uma mulher progressista e a família Naboa, os multimilionários das bananas que, com o pai e agora o filho, já vão na quinta tentativa de conquistar a presidência. Talvez algumas das razões para estas oscilações possam ser medidas por dois exemplos de tiranos, o de Salvador, Nayib Bukele, e o da Nicarágua, Daniel Ortega.

Tão diferentes, tão iguais

Os dois países vizinhos, Nicarágua e Salvador, também tiveram histórias comparáveis, com longas ditaduras que foram desafiadas por movimentos guerrilheiros de base popular. No entanto, a Frente Sandinista da Nicarágua triunfou em 1979 e a FMLN de Salvador só unificou diversos momentos de resistência em resposta ao assassinato em 1980 do arcebispo de San Salvador por paramilitares, só conseguindo a presidência em 2009. A primeira figura do meu argumento, Daniel Ortega, vem desse tempo: era o dirigente sandinista mais destacado e dirigiu o Governo depois da fuga do ditador, Somoza.

Bukele anunciou que uma criptomoeda passa a ser moeda legal do país e que faz operações de compra desses ativos na casa de banho, por telemóvel, a partir das contas do Estado, dizendo-se o “CEO de El Salvador”

Foi depois derrotado em eleições presidenciais em 1990, já levava 11 anos de poder. E foi reeleito em 2006 e sucessivamente até hoje. Tem portanto 28 anos de presidência, agora compartilhada com a sua mulher como vice-presidente. Se bem que nas relações internacionais Ortega continue a aparecer ao lado de Lula, o seu poder assenta em compromissos reacionários — nas vésperas da sua segunda vida como presidente, Ortega levou os deputados do seu partido a aceitar uma lei do aborto que o proíbe e pune mesmo em caso de violação da mulher ou de risco da sua vida — e, sobretudo, na violência contra os opositores. As organizações de direitos humanos registam centenas de pessoas a quem foi retirada a cidadania, incluindo muitos antigos camaradas do presidente, e os ataques de milícias orteguistas contra protestos de estudantes provocaram centenas de mortos em 2018 e 2019. O sucesso de Ortega é o terror e, uma vez no poder, demonstrou que fará o impensável para o conservar.

Organizar a “ditadura cool”

Bukele é um novato no poder, foi eleito em 2019. Tem sido fulgurante: em 2020, como o parlamento recusava uma sua proposta de lei, invadiu-o com o exército e conseguiu o que queria. Instaurou o estado de sítio em 2022, já o prolongou por quinze vezes, pelo que se chama a si próprio o “ditador mais cool do mundo”. Ganhou popularidade com promessas de segurança, que incluem esse estado de suspensão de direitos constitucionais e a militarização do país. Entretanto já tinha substituído os juízes do Tribunal Constitucional e o procurador-geral, que investigavam alguns dos seus amigos por corrupção, e fez aprovar uma lei que permite que as mais de 70 mil pessoas presas durante o seu mandato, o que quer dizer o equivalente a 7% dos homens entre os 14 e os 29 anos, segundo as contas do “The Economist”, sejam julgadas em simultâneo em grupos de até novecentos acusados e, portanto, sem direito a defesa. Como basta uma denúncia anónima para se ser preso, este sistema carcerário tornou-se o seu ministério que, como é muito caro, o levou a forçar as famílias a pagar a alimentação dos presos. Acresce que Bukele toma as medidas mais extravagantes: anunciou que uma criptomoeda passa a ser moeda legal do país e que faz operações de compra desses ativos na casa de banho, por telemóvel, a partir das contas do Estado, dizendo-se o “CEO de El Salvador”. Precisa, para tanto, de silenciar a oposição e o jornalismo: é fácil, aprovou uma lei que prevê até 15 anos de prisão para quem difundir mensagens que “criem ansiedade ou pânico”.

Assim, se a primeira lição destes dois tiranetes é agarrar-se ao poder e proibir a imprensa e a opinião livre, o segundo é mais prometedor: oferecer uma ditadura trocando a liberdade por uma sensação de segurança militarizada. Que seja a extrema-direita sob o manto do populismo de Bukele ou o autoritarismo da marca Ortega, os discursos são menos importantes do que a realidade, que nos repete que o poder está na ponta da espingarda. Os desta nova raça de políticos, quando lá chegam, nem admitem que podem ser um dia substituídos.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 25 de agosto de 2023

Francisco Louçã
Sobre o/a autor(a)

Francisco Louçã

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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