Consta que o Governo deliberou que, uma vez que é arreliado por casões regulares, decidiu passar a fabricar casinhos, pondo à vez um dos seus ministros a proclamar algo de chocante para entreter a bolha: uma vez é a ida de Costa para Bruxelas, depois é o aeroporto de Santarém, outra é o cartoon da RTP, agora a pergunta de uma jornalista. Domesticar o animal alimentando a sua ansiedade, em resumo. Conhecendo a nossa paróquia, não se estranhe que isto funcione no entretenimento. Mas arrasta ao mesmo tempo demasiada banalidade e cria o paradoxo da desvalorização do próprio Governo, pois ao fim do enésimo episódio alguém se perguntará se isto tudo não enfastia pela irrelevância. E o contraste não podia ser maior entre este frenesim casuístico e o falhanço em cuidar do que interessa. O Governo quer tornar-se notícia para não atuar. Ou melhor, para atuar como irrelevância, e esse é o caso da resposta à inflação.
Até agora, os governantes limitaram-se a repetir as frases do BCE, com o azar dos Távoras de serem sempre falsas: primeiro, que a subida dos preços era temporária, depois, que se devia temer o efeito de uma espiral salários-inflação, com o requinte malicioso de essa afirmação ser plantada quando os salários mais caíram em termos reais. Toda essa doutrina tem sido desmentida pelos teimosos factos e, num caso, até pelos seus doutrinadores: no mês passado, dois dos mais destacados economistas conservadores, Bernanke, que foi presidente da Reserva Federal dos EUA, e Blanchard publicaram um estudo (“What Caused the U.S. Pandemic-Era Inflation?”) que desmentia esta hipótese da causalidade salarial. Escrevem eles que “demonstramos que, ao contrário das preocupações originais de que a inflação seria desencadeada por sobreaquecidos mercados de trabalho, a maior parte da inflação que começou em 2021 foi o resultado de choques, dados os salários. Esses choques incluem bruscos aumentos nos preços dos bens, refletindo uma forte procura agregada, e subidas em preços setoriais”. O FMI acrescenta, entretanto, que metade da inflação é puxada pelos sobrelucros das empresas (em Portugal, como sempre mais vibrante, seriam dois terços).
Até agora, os governantes limitaram-se a repetir as frases do BCE, com o azar dos Távoras de serem sempre falsas
Num estudo lançado esta semana por dois economistas portugueses, Diogo Martins e Vicente Ferreira, nos “Cadernos” do Observatório sobre Crises e Alternativas, do CES (“A Inflação Pós-Pandemia”), estes dados são estudados de forma mais detalhada. Os autores demonstram que os preços subiram primeiro com o choque na energia, com efeitos na eletricidade, gás e transportes, e depois nos sectores de alimentos, habitação, restauração. Mas a energia já está nos mercados internacionais a preços mais baixos do que antes da pandemia, portanto a inflação mantém-se por estes choques terem aberto a porta à mudança do regime de preços, permitindo aos oligopólios exercerem o seu poder, perante a esperada passividade dos Governos. Neste contexto, a resposta da política monetária restritiva do BCE, a subida dos juros, é uma poção venenosa: mesmo que consiga criar a recessão que distorça a procura, não impede o efeito de arrastamento deste regime de acumulação pela especulação. Cria, aliás, outros efeitos, ao transitar de um sistema de liquidez que promovia os preços dos ativos financeiros para um modelo de juros que cria maior volatilidade. Assim, a inflação especulativa afeta o consumo ao reduzir os rendimentos reais dos mais pobres e as medidas tomadas geram uma nova instabilidade. Não seria de esperar outra coisa, o poder é o poder.
Artigo publicado no jornal “Expresso” a 21 de julho de 2023