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Não passarão, mas tem dias

Que é feito dessa promessa garbosa de um levantamento antifascista, de uma intransigência moralizante, de uma aliança progressista europeia e de um combate valente contra as forças das trevas?

O quase insignificante episódio da escala de Costa em Budapeste dissolveu-se no ar. Todas as mais sorrateiras justificações têm eco popular: o homem gosta de futebol, e quem não gosta; em calhando, até foi lá apalavrar em segredo um campeonato em Portugal, depois da Jornada Mundial da Juventude precisamos de um novo desígnio nacional e não há melhor do que a bola; no mínimo, foi cumprimentar um colega com quem tem “relações de trabalho”, diz o comunicado oficial. Tudo é leve e, portanto, passa depressa. O que restou, no entanto, foi a pergunta mais difícil: e o “não passarão”, entoado em tom heroico em comícios ainda há pouco, aliás até repetido no Parlamento como um chamamento às armas, em cenas que deixam o país suspenso, agora é que chega a vias de facto? Que é feito dessa promessa garbosa de um levantamento antifascista, de uma intransigência moralizante, de uma aliança progressista europeia — o termo foi mesmo usado repetidamente — e de um combate valente contra as forças das trevas? Nada, pois era o que se esperava.

Nada de novo

Qual é então a surpresa sobre a confraternização com Orbán? Nenhuma. Para esta política internacional não valem valores. Ele é um “aliado europeu”, acrescentou mesmo um governante, com convicção; por isso Costa sempre contestou as propostas de sanções, certamente mais fingidas do que reais, contra o Governo da Hungria. O que “passa” e o que “não passa” não importa neste jogo de bancada.

Acontece que a situação está feia. Orbán tem 17 anos de primeiro-ministro e domina a Hungria sem limitação à sua deriva autoritária; a Polónia e a agora chamada Chéquia seguem-lhe os passos; a extrema-direita dirige Itália, entrou no Governo finlandês, está em lugar destacado nas sondagens na Áustria e Alemanha (em ambos os casos à frente da social-democracia) e em Espanha instalou-se na aliança da direita que disputa as eleições e as pode vencer. Zelensky tem a Ucrânia na mão e Putin, que declara terçar contra a degradação homossexual do Ocidente, financia partidos de extrema-direita onde pode. Perderam no Brasil e noutros países da América Latina, mas podem recuperar a presidência argentina, com a particularidade de que o candidato seguinte é sempre mais estapafúrdio do que o anterior, é possível que essa tendência se confirme também no Brasil depois de Bolsonaro. Nos Estados Unidos está plenamente verificada: Trump 2 é pior do que Trump 1 e DeSantis é a sua caricatura. Assim, o “não passarão” teria bons argumentos: é preciso para salvaguardar e ampliar direitos essenciais e essa política tem povo.

A extrema-direitização tornou a política mais azeda, a comunicação mais frenética, o espaço para a conversação mais limitado, interditou a reflexão

Pois o que só parece surpreender quem é mais incauto é o enunciado destas extremas-direitas sobre os seus inimigos: imigração e mulheres. No discurso sobre as migrações e o medo do outro não há novidade, foi assim desde sempre, mesmo que o outro fosse de dentro (os judeus, os ciganos) e agora sejam os de fora, os refugiados de guerra ou os pobres que emigram; mas a incidência do ódio contra as mulheres tem contornos novos, pela simples razão de que, ao contrário de períodos históricos anteriores de ascenso da extrema-direita, elas entretanto constitucionalizaram e normalizaram direitos e formas de igualdade que passaram a fazer parte da cultura social. Expressivamente, o programa do Vox em Espanha é acabar com as leis que punem a violência de género, é a sua prioridade. Esta explicitação da corrosão democrática — o país é para os “homens de bem” — indica, simultaneamente, o campo social em que se move esta direita e o campo social em que se deve mobilizar uma alternativa. Não passarão se a maioria se erguer pelos fundamentos da igualdade democrática.

E se já estão a passar?

A hipótese de vitórias em grandes países europeus, além de Itália, da direita transformada em extrema-direita, por aliança ou por contaminação, está, portanto, a ser jogada nestes anos, não estando determinada. No entanto, o que se pode perguntar é qual é a razão para uma resistência tão débil. E creio que há duas explicações, a primeira das quais está nos Governos de centro, de Macron a Scholz e a Costa: pior do que uma desilusão, são uma confirmação, cada qual à sua maneira, da recusa de constituir um campo alternativo. Ao conceberem que a única forma de governar é aceitar o pacto da desigualdade e, portanto, ao baterem-se pela degradação das condições de vida da população (para Macron é o aumento da idade da reforma, para o PS português é estimular o mercado da habitação e da saúde), supondo que assim conseguem uma confiança da oligarquia, que os preferirá às aventuras dos arruaceiros da extrema-direita, apostam numa solução faustiana que amaldiçoa as suas políticas de compensação (os subsídios e apoios pontuais que acenam com dinheiro no fim do mês a quem continua a viver com salário baixo). Tudo se perde e nada se ganha, e as pessoas dão-se conta disso.

A segunda razão, ainda assim, é mais comprometedora: é que não há solução social que não seja mais exigente do que qualquer política redistributiva do passado. A extrema-direitização tornou a política mais azeda, a comunicação mais frenética, o espaço para a conversação mais limitado, interditou a reflexão e, face a esse precipício, a resposta aos problemas “estruturais” — energia, transportes, habitação, saúde — exige levantar do chão os bens comuns como raiz da democracia. É aí que o povo espera o “não passarão”.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 23 de junho de 2023

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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