O caso do empreendedor que negociou com a Câmara de Caminha o pagamento de €369 mil de renda referente a 2046 por um edifício a construir num terreno inexistente não é só a prova de como se deita alegremente dinheiro à rua, do poder discricionário de um presidente a fazer carreira política ou até do poder de sedução de um PowerPoint. Isso, com franqueza, até será o menos. Mais importante pode ser que um percurso partidário assente nestes expedientes possa constituir referência bastante para alcandorar o decisor à coordenação do Conselho de Ministros, ou que, uma vez conhecida a marosca, ela tenha sido inicialmente apresentada como um banal ato de gestão. E, se me permitem, muito mais grave é percebermos que a tradição satírica dos Gato Fedorento só foi um pálido reflexo da riqueza histriónica que se pode encontrar em muita daquela política nacional e que a realidade supera sempre a ficção. Isso magoa. Afinal, temos tudo o que se podia pedir numa ópera bufa e faltam-nos cronistas à altura do acontecimento?
O caso do PhD, MBA, CFA
Do caso da renda adiantada pouco mais há a dizer. Mas as explicações do empreendedor chegam a ser enternecedoras e devem ser registadas em mármore. Ele ter-se-á apresentado, na carta inicial, como “fulano tal, PhD, MBA, CFA” (confesso que o CFA me surpreende). Afinal, parece que era só uma forma de tratamento carinhoso e “genérico” pela malta “que escreve estas coisas”, que, aliás, não se sabe quem seja. É coisa comum, claro, PhDizinho, como estás? Depois, era controller na Unilever e “analista” na Vodafone, em Londres, onde também seria “diretor de investimento” da Goldman Sachs, tudo empresas que tiveram o mau gosto de o desmentir. Parece que a Câmara, que anunciara estas suas qualificações impressionantes, retirou este CV da sua página. O problema é que a coisa não ficava por aqui. Temos depois a sua parte na Super Bock Arena e na TAV Airports, duas empresas que dizem ignorar se o empreendedor comprou alguma ação, mas que não tem nenhuma participação assinalada. Os tais 15 (já foram 20) aeroportos em que tinha negócios esfumaram-se no ar. Mas gere uma carteira de €1,2 mil milhões e, para quem tem dúvidas, aponta dois restaurantes. E ligações ao poder político, não podiam faltar: assessor do ministro das Finanças e da CCDR do Centro, se bem que ambas as instituições tenham negado. Tudo muito “complexo”, explica no Expresso, são mais de 500 empresas “por aí, no mundo”, no Azerbaijão, na Geórgia, empresa-mãe no Luxemburgo, onde é que havia de ser. A sede era nos Emirados Árabes Unidos, mas já não é, afinal foi só um projeto. Se desconfia de tudo isto, é mau caráter seu, a prova provada de que é um empreendedor a sério é que explica que não pagar impostos, usando empresas em paraísos fiscais, “é uma metodologia comum”. Estas coisas ditas com tal candura têm outro encanto.
Aprendizes de feiticeiro pululam num mundo em que a informação engana e a especulação ataca e foge
Nenhuma figura dos Gato Fedorento ou Herman José, nas suas ilustres carreiras, jamais subiu a este monumento de atrevimento. No entanto, como caricatura, esta história é mais verdadeira do que muitas das que contaram sucessos, tal como D. Quixote é mais realista do que os cavaleiros andantes que parodiava. Simplesmente, temos muitos empreendedores como este e bem mais notáveis.
Segredos milionários
Há uns anos, não foram muitos, surgiu uma empresa desconhecida que registou o valor contabilístico de dezenas de milhares de milhões de euros. O seu ativo seria uma invenção de um software maravilhoso, que estava por desenvolver e cujo objetivo era também segredo. Não deixou de ser certificado por um contabilista reformado, que atestava a magnificência da ideia, se bem que as autoridades desconfiassem de uma empresa que não tinha qualquer movimento financeiro. Em todo o caso, os empreendedores reclamavam valer cerca de 20% do PIB, se a memória não me falha. Pensariam então que bastava uma promessa para atrair investidores ávidos de foguetes bolsistas. Não se ouviu mais falar disto. O certo é que aprendizes de feiticeiro pululam num mundo em que a informação engana e a especulação ataca e foge. Este Governo, como outros, adora a ideia e agora namora com os “nómadas digitais”, atraídos pela promessa de impostos risíveis, para que se instalem à beira-mar pela época alta e comprem uma mansãozita. Mas deve ser reconhecido que nem sempre foi assim, já houve senhores neste mercado.
António Champalimaud, venerado como o empresário de maior sucesso da segunda metade do século XX, contou como comprou um banco, o BPSM, com um cheque careca: “Não regateei a quantia, mandei vir um cheque avulso e preenchi-o logo ali, sacando sobre a minha conta e fechando assim o negócio. Fiquei só a dever, para pagar daí a 30 dias, uma percentagem pequena” (“Exame”, junho de 2004). Dito de outro modo, quando o cheque sem cobertura teve que ser pago, Champalimaud já presidia ao banco. Não foi o único génio financeiro. Se se lembrar do depoimento numa comissão de inquérito de Oliveira e Costa, ex-secretário de Estado de um Ministério das Finanças de Cavaco Silva, sobre o escândalo BPN, terá uma medida de como alguns grandes vingaram. Ou o de Berardo, e a lista continua.
O erro do nosso “PhD” foi só não ter conseguido ir mais longe com o seu padrinho. A traição foi muito feia.
Artigo publicado no jornal Expresso a 18 de novembro de 2022