O discurso de vitória de Lula voltou a um dos temas e ações mais importantes das suas presidências anteriores: garantir que cada pessoa tome um pequeno-almoço, um almoço e um jantar, deixando de viver sob a tormenta diária da fome. Foi coerente consigo próprio, com a sua campanha e com uma prioridade humana essencial. Mas é preciso reconhecer que não foi fundamentalmente pela expectativa desta resposta que ganhou as eleições, mas antes pelo temor que o desastre pandémico, a arrogância militarizada e a boçalidade do adversário criaram entre pessoas das mais sofridas do país. Ao contrário da sua primeira vitória, Lula não foi agora eleito por um movimento que aspirava a uma mudança social urgente, foi eleito pelo desespero perante a selvajaria bolsonarista e para evitar que o país continuasse a afundar-se. A esperança de uma viragem progressista é curta e, aliás, o que disso houver vai ser depressa atenuado pelas composições das alianças de governo e pelo negócio orçamental com os coronéis das amibas políticas que dominam o parlamento, o “centrão”.
Acresce que, maioritário entre os homens brancos e entre os de maiores rendimentos — exatamente o padrão Trump —, Bolsonaro obteve a sua maior votação de sempre (como também aconteceu com Trump na sua recandidatura), tendo sido derrotado porque nunca nenhum candidato recebeu tantos votos quantos os de Lula (como aconteceu com Biden). Ou seja, a direita de hoje tem motivos para recear o risco eleitoral de uma polarização democrática, mas festeja o sucesso fulgurante da sua recomposição (a afirmação da hegemonia da extrema-direita) e comprovou que mesmo a ganância desenfreada (o saque da Amazónia), o espetáculo dos príncipes tartufos (os filhos de Trump e Bolsonaro e o seu séquito) ou ainda o isolamento internacional (o Brasil desapareceu do mapa-mundo) são multiplicados pelo movimento identitário mais poderoso do século XXI: a redescoberta do fanatismo religioso como a voz da política. Os bufões que são agora os ícones da direita, e assim vão permanecer, se não reforçar-se, fazem-se adorar como a reencarnação da fúria divina e têm multidões a segui-los. É o regresso do reprimido, a mais antiga das estratégias de dominação, o terror que cria cumplicidade das vítimas.
A fome não é só a lonjura
E é aqui que o apelo de Lula ganha um novo sentido, porventura até distinto do que significava quando iniciou o seu mandato em 2003. O Brasil é dos países que tem capacidade excedentária na produção de bens alimentares, mesmo que a expansão dessa potência, particularmente no cultivo de soja, seja responsável pela desflorestação. Pode, portanto, dar passos importantes no sentido daquela promessa, embora isso implique decisões difíceis e ignoradas em mandatos anteriores, como planear a produção agrícola, adaptar a agropecuária, controlar preços e proteger a floresta. Mas quatro quintos da população mundial vivem em países que, pelo contrário, dependem da importação de alimentos, e, segundo o Programa Alimentar Mundial da ONU, 828 milhões de pessoas, mais de um décimo da Humanidade, vai dormir cada noite com fome. Cerca de 45 milhões, segundo a mesma organização, estão a morrer de fome. E o que a comunidade internacional faz para responder a este problema é ocultá-lo: o Programa anunciou este ano que a restrição orçamental forçou a redução da ração alimentar mínima que distribui no Sudão do Sul, Nigéria (o país rico que exporta gás e petróleo, notou?) e Iémen, para poder abranger mais pessoas. A fome está a destruir uma parte do mundo.
Lula não foi agora eleito por um movimento que aspirava a uma mudança social urgente, foi eleito pelo desespero perante a selvajaria bolsonarista e para evitar que o país continuasse a afundar-se
Há três razões que agravam esta regra da fome: a crise climática, as guerras e a desigualdade que organiza a produção alimentar. Nenhuma delas é passageira, tendem a agravar-se e as consequências não se conseguem contar em infâncias perdidas, em número de mortos e em pessoas forçadas a fugir e a emigrar. Um desses motores da fome instalou-se na Europa, com a invasão russa da Ucrânia, e tem impacto no mundo inteiro.
O efeito da guerra na Ucrânia
Antes da guerra, a Rússia e a Ucrânia eram responsáveis por 28% da exportação mundial de trigo, sendo a Rússia o primeiro exportador mundial e a Ucrânia o quinto, mas também de 29% da cevada, 15% do milho e 75% do óleo de girassol. Alguns países dependiam destas importações: o Egito comprava a estes dois países 86% do seu trigo, a Turquia 77% e o Paquistão 88%. Por essa razão e apesar das sanções, a Rússia aumentou as suas exportações de cereais, sendo 2022 o seu melhor ano. Mas, com a guerra, 26 países congelaram as suas vendas de cereais, tendo a Índia chegado a proibi-las. Ora, como seria de esperar, o efeito nos preços seguiu, ou até antecipou estas restrições, afetando sobretudo os países africanos e o sul da Ásia. Esta rota do medo provoca a espiral de preços, ampliados por esta especulação que o poder inflacionário entrega às mãos das grandes empresas distribuidoras (o preço internacional do óleo de girassol voltou entretanto ao nível anterior à guerra, mas a notícia não chegou aos supermercados). Segundo a ONU, estas restrições retiram 15% das calorias consumidas no mundo.
Pelo menos no Brasil, Lula anuncia que se esforçará por cuidar da sua gente. Do lado de cá do Atlântico a guerra continuará a ser melhor negócio do que essa ideia simples de cuidar da alimentação de quem não tem nada, para garantir o dia de amanhã.
Artigo publicado no jornal “Expresso” de 4 de novembro de 2022