Dentro de poucas semanas, o mundo vai estar com os olhos postos no Qatar, onde se realiza o Campeonato do Mundo. Trata-se de um país com cerca de três milhões de habitantes e onde apenas um décimo da população tem acesso a alguns direitos básicos, como o da cidadania. Não há partidos nem eleições nem protestos e o emir controla os poderes executivo, legislativo e judicial. Os não-nacionais representam 95% da mão-de-obra e a maioria veio do sul da Ásia ou da África subsariana em busca de uma vida melhor. Acabam na mão de empregadores que detêm todo o poder sobre a sua vida, graças ao sistema da kafala ou patrocínio, e que impede os trabalhadores de mudar de trabalho ou até sair do país sem a autorização do patrão. Por sua vez, este usa a chantagem da denúncia do crime de fuga, em que o trabalhador pode ser condenado a pena de prisão, seguindo-se a deportação.
No caso das trabalhadoras domésticas, a esses abusos soma-se o abuso físico e sexual, presas numa casa com os documentos e o telemóvel confiscado e sem acesso a quaisquer mecanismos de auxílio ou denúncia. A discriminação das mulheres continua a ser das mais severas do mundo e a população LGBTI+ queixa-se de perseguição e espancamentos por parte da polícia num país onde o sexo fora do casamento é punido com pena até 10 anos de prisão.
A todas estas denúncias do quotidiano do país anfitrião do seu maior torneio a Fifa responde pedindo às seleções que "não deixem que o futebol seja arrastado para todas as batalhas políticas e ideológicas que existem". E parece sugerir que mais do que exigir o respeito pelos direitos humanos, o que importa é "respeitar todas as opiniões e crenças, sem pretender dar lições de moral ao resto do mundo". Na mensagem enviada por Gianni Infantino, o cadastro de violações de direitos humanos por parte do regime do Qatar faz parte da "diversidade" que é preciso respeitar, pois "nenhum povo, cultura ou nação é melhor do que outra".
Pressões foram muitas, mudanças quase nenhumas
Nos últimos anos, a pressão internacional obrigou o emirado a prometer mudanças, que em muitos casos não passaram de cosmética. Face aos abusos cometidos sobre os trabalhadores da construção das infraestruturas necessárias à realizaçao do evento, obrigados a trabalhar sob altíssimas temperaturas e dos quais terão morrido mais de 6.500, o Qatar anunciou a abertura de um fundo de compensação para aqueles que viram os seus salários retidos e nunca serem pagos. As compensações chegaram a poucas dezenas de milhares e a Amnistia Internacional lançou uma campanha para obrigar o Qatar mas também a Fifa e os grandes patrocinadores do Mundial a abrirem um novo fundo de compensação que possa chegar a mais gente. A proposta foi recusada pelo governo do país e a Fifa tarda em aprovar medidas concretas nesse sentido.
A atribuição do Mundial ao Qatar está envolta em polémica desde o início, em 2010, e terá contribuído para a queda com estrondo dos principais dirigentes da Fifa na altura, Sepp Blatter e Michel Platini. O francês, então presidente da Uefa e candidato a liderar a Fifa, terá mudado o seu apoio à candidatura dos Estados Unidos para influenciar os membros do comité a votarem no Qatar. O momento da mudança de opinião terá sido um pequeno-almoço no Eliseu promovido pelo então presidente Sarkozy com o então príncipe e atual emir do Qatar. Este prometeu reforçar os investimentos em França, com a aquisição do clube Paris St. Germain, o reforço acionista no grupo Lagardère e o lançamento de um concorente ao Canal+ pelos direitos televisivos desportivos com o canal BeIN Sports, em troca do apoio decisivo do país. O Qatar venceu, os EUA perderam e Platini não demorou a ser perseguido pela justiça suíça, com o apoio das autoridades norte-americanas, por alegados crimes fiscais dos quais só este ano veio a ser absolvido, muito depois de ter sido afastado da alta roda do negócio do futebol.
Um evento que lava a imagem do regime em troca de uma pesada fatura ambiental e económica
Os organizadores apresentam o Mundial como amigo do ambiente e o primeiro de sempre a atingir a neutralidade carbónica. Mas um relatório do Carbon Market Watch resumido neste dossier conclui que isso se deve à contabilidade criativa do Qatar e da Fifa. As emissões associadas à construção dos estádios são muito subestimadas e os créditos de carbono prometidos e criados por uma organização ligada ao fundo soberano do Qatar levantam todas as dúvidas sobre a sua independência e integridade.
Outro artigo deste dossier analisa as razões do declínio do entusiasmo em acolher mega-eventos por parte das grandes economias. Os buracos financeiros das anteriores edições servem de lição aos possíveis candidatos e os interessados são agora países que não ligam a despesas para exercer o "soft power" na arena política mundial que este tipo de eventos transporta, esperando ganhar prestígio e de caminho lavar a imagem do seu regime. É agora o caso do Qatar como foi o da Rússia em 2018, defendia o investigador John Varano neste artigo escrito no ano anterior a esse Mundial de Futebol.
Boicote? Só se for aos ecrãs...
O ensaísta francês da sociologia do desporto Marc Perelman relembra neste artigo a sua experiência na campanha do boicote ao Mundial da Argentina de 1978 por causa da ditadura mortífera naquele país, sublinhando que o único boicote nesse apelo era à participação da seleção francesa. A campanha teve grande impacto na Europa, mas nenhum resultado prático, nem mesmo simbólico, dentro das quatro linhas. Perelman argumenta que o "boicote" agora promovido por alguns autarcas da esquerda francesa, ao recusarem-se a instalar ecrãs gigantes nas praças das suas cidades, ou de algumas celebridades futebolísticas que juram não ir assistir a nenhum jogo na tv, "é despolitizado e despolitizante, uma vez que se torna um assunto privado e não é uma resposta coletiva" e por isso "não põe em causa a sinistra farsa desta Taça nojenta".
Com as equipas a entrarem em campo sem sinais de protesto - do que se sabe, o equipamento da Dinamarca terá o símbolo esbatido e os capitães de oito seleções usarão braçadeiras arco-íris -, a única forma de trazer a primeiro plano os horrores a que é submetida a população migrante do Qatar será através dos jornalistas que todos os dias entrarão nas nossas casas através dos ecrãs para falarem do que ali veem. Mas mesmo essa tarefa estará dificultada, pois o Governo obriga as cadeias televisivas a assinar um compromisso que as impede de filmar pessoas em locais fechados como habitações ou perto de edifícios públicos, religiosos e muitos outros. O Qatar espera que a autocensura que é praticada na imprensa local seja também adotada pelos jornalistas estrangeiros, sob pena de serem detidos como os jornalistas britânicos e noruegueses que investigavam os abusos sobre trabalhadores da construção. Veremos se a imprensa internacional saberá estar à altura.