Passado o tempo breve em que se notaram pela nossa terra os sustos entre os imitadores e os memes rascas, substituída Liz Truss à velocidade da luz por outra figura do partido que, coisas dos costumes locais, gere o poder como se fosse a sua garagem, fica a pergunta: porque é que os “mercados”, esse misterioso e volúvel Zeus que tanto seduz quanto se vinga dos terráqueos, condenaram uma fiel entre os fiéis? Ou, porque é que sacrificaram sem remorso a sua ideia, tão convidativa, de baixar os impostos dos mais ricos?
A inutilidade do truque dos impostos
Quando Truss apresentou o seu programa fiscal, a conta era choruda: 45 mil milhões de libras para as empresas e 60 para custos energéticos, em grande medida também para empresas distribuidoras e consumidoras. Não havia nisto nenhuma surpresa, pois há dez anos os mais thatcheristas do Partido Conservador tinham publicado o seu programa, “Britannia Unchained”, que imaginava o impulso económico criado pela baixa de impostos e pela inundação de apoios ao capital. Mesmo assim, foram traídos pelo mercado que já sabia ao que vinham, porque se percebeu o que era certo desde a oposição da City ao ‘Brexit’, não há especuladores dispostos a apostar neste agigantamento do défice público. A consequente desvalorização da libra, que num ápice atingiu o valor mais baixo em relação ao dólar, ou o medo da subida de juros e a redução do valor dos ativos financeiros que constituem os fundos privados de pensões, que assim poderiam falir, obrigou a uma intervenção do Banco de Inglaterra, mas este anunciou que seria por um prazo curto e inapelável. O Banco de Inglaterra despediu Truss.
Uma das razões para este castigo é a evidência. Baixar os impostos esperando mais investimento e que assim se compense o défice, isso já foi experimentado sob outra forma, a de um longo período de juros nulos — e o investimento reduziu-se. Fazer duas vezes a mesma experiência esperando um milagre é religião e os mercados são ateus. Havia, claro, a alternativa de transferir o custo da baixa dos impostos para cortes brutos na despesa social mas, depois de tanta austeridade, isso já exige alguma espécie de lei marcial.
Quem manda, manda
O que os liberais se esqueceram foi do seu próprio êxito: quando, há poucas décadas, transformaram os bancos centrais em unidades políticas inexpugnáveis à vida democrática, retiraram aos países a capacidade de gerir as economias. Se o Banco de Inglaterra tivesse pagado o projeto inviável de Truss, ela teria vencido. Foi derrubada pela sua própria instituição. E se na zona euro a evolução foi diferente (e com restrições orçamentais que os liberais reforçam), foi porque o BCE violou as suas regras desde 2012 e financiou as dívidas públicas, na prática, sem limitação.
É aqui que entra o triunfo de Washington na guerra da Ucrânia, oferecido por Putin. Submetendo a Europa e, em particular, reduzindo a Alemanha a uma nova forma de dependência energética, os EUA usam o poder imenso do banco central que financia a sua dívida gigantesca na própria moeda e que, hegemónico como é e subindo os juros, atrai capitais sem limite, exportando desse modo a recessão para o mundo e justificando toda a operação com os seus custos do militarismo planetário. Correndo atrás do prejuízo, tanto o Banco de Inglaterra como o BCE aumentaram os juros, aceitando a armadilha de atacar as suas economias, como capatazes desta ordem na Europa. Festejarão essa escolha, limitarem a inflação controlando os preços da energia é que nunca poderia ser, Zeus lançaria a sua fúria contra nós.
Artigo publicado a 28 de outubro de 2022