Cinco anos depois de ter terminado a sua série sobre “Alice”, Charles Dogson, aliás Lewis Carroll, escreve “A Caça ao Snark”, um poema satírico sobre uma expedição para descobrir um animal fugidio, o tal “snark”. “Compramos um grande mapa representando o mar/Sem o menor vestígio de terra/E a tripulação ficou muito satisfeita quando descobriu que era/Um mapa que todos podiam perceber.” O “bravo Capitão” levava um mapa em branco e só tinha uma única ideia para atravessar o oceano: fazer tinir o seu sino. Escusado será referir que o “snark” nunca foi avistado.
Antes fosse assim o nosso Governo, mesmo que a sua tripulação lembre a da aventura de Carroll, estando igualmente satisfeita por navegar com um mapa vazio. Mas o som do sino do Capitão tem um refrão e é o que ouvimos neste debate cada dia mais espantoso sobre a redução futura das pensões. Essa é a pior das heranças que nos deixará este terceiro Governo Costa, e olhe que está empenhado nisso: perante a dificuldade, quer convencer a população de que quem recebe uma pensão é egoísta ao criar um problema ao país e impõe a ideia de que, na crise, a solução será sempre reduzir o valor real dos rendimentos, sejam salários (o guloso assalto aos funcionários públicos), sejam pensões (o cutelo a partir de 2024). Ora, ao mesmo tempo que apresentam esta baixa do poder de compra como uma inevitabilidade, membros do Governo atacam-se florentinamente em público sobre a forma de reduzir os impostos a empresas, que, sobretudo quando têm muito, pouco pagam (o IRC é um terço do total que pagamos em IRS e menos de um quinto do que pagamos em IVA e outros impostos indiretos, mas a parte do capital é metade do rendimento nacional), o que só acrescenta alguma comédia a esta discussão: dizem-nos simultaneamente que é preciso baixar todas as pensões futuras em nome da sustentabilidade, pois não haveria forma de as financiar, e reduz-se já a receita do Estado, o que convém a alguns.
Membros do Governo atacam-se florentinamente em público sobre a forma de reduzir os impostos a empresas
Outras anomalias do discurso vão dando o tom a esta prosápia económica: Portugal estaria a transbordar de felicidade, o maior aumento de PIB da zona euro, a mais gloriosa redução do défice, em conclusão, é preciso amputar as pensões em termos reais. Esplêndido superávite da Segurança Social, nutridas reservas, em conclusão, impõe-se o corte. Nem sei se os ministros se dão conta de como a população sabe que nos estão a tratar por estúpidos, mas o facto é que não escondem a reprodução do discurso passista, que, ao menos, apregoava claramente a utilidade de empobrecer, ao passo que o Capitão agora se limita a dizer-nos que as pensões futuras têm de baixar em termos reais — o que é a mesma coisa, dito em politiquês mais retorcido.
Escolher as pensões para este exercício de “sustentabilidade”, ou de contenção orçamental, tem ainda duas leituras poderosas. A primeira é que os pensionistas são pobres: a média da pensão de velhice na Segurança Social está abaixo do limiar de pobreza e impor-lhe um futuro de cortes é cruel. A segunda é que a lei que estabeleceria segurança é alterada para criar a certeza da insegurança. Notou que o mapa estava em branco?
Artigo publicado no jornal “Expresso” a 23 de setembro de 2022