Nas vésperas da sua escolha pelos membros do Partido Conservador para o cargo de primeira-ministra, que herdou de Boris Johnson, Liz Truss foi interpelada por um jornalista do “The Guardian” sobre o seu plano para baixar impostos. O jornalista mostrou-lhe um estudo que demonstra que o plano dá 7 libras a quem tem menores rendimentos e 1800 a quem tem os maiores, cerca de 250 vezes mais, e perguntou-lhe se achava justa essa disparidade. Truss não hesitou e respondeu que “sim, é justo”, e que “não podemos analisar os impostos pelas lentes da redistribuição”. Isto é uma liberal a sério. A sua política agrava a desigualdade e tem orgulho nisso. Ela não quer justiça, mesmo que use a palavra, o que quer é dinheiro para os seus. Há nesta candura uma arrogância social que é todo um programa, mas que é raro encontrar em políticos que vivem emaranhados em subtilezas de meninice de coro, entre meias palavras, silêncios e cálculos sobre a melhor trapaça.
A genealogia não engana
Os antepassados políticos de Truss, em contraste com estas modernas vacilações retóricas, não hesitavam. Há toda uma genealogia de empresários que dispuseram dos seus países a bel-prazer e que se exprimiram com a mesma nitidez da agora nomeada primeira-ministra do Reino Unido. As gerações dos barões-ladrões dos Estados Unidos destacam-se nessa história (em 1882, o magnate dos caminhos de ferro William Vanderbilt dizia a quem o queria ouvir: “Que se lixe o público! Gostamos de fazer tudo o que seja possível para benefício da humanidade em geral, mas em primeiro lugar tratamos de nos certificar de que somos os primeiros a beneficiar.”).
Um dos que chegou ao Governo foi o banqueiro Andrew Mellon, porventura o mais rico do seu tempo e que foi secretário do Tesouro do Presidente Herbert Hoover, cabendo-lhes responder à grande crise de 1929. Conta Hoover nas suas “Memórias”, publicadas no recato dos anos 50, que Mellon lhe propôs uma solução radical para corrigir a recessão: “Liquidar o trabalho, liquidar as ações, liquidar os camponeses, liquidar o imobiliário. Isso purgará a podridão do nosso sistema. O alto custo de vida e a vida opulenta cairão. As pessoas trabalharão mais e viverão uma vida moral. Os valores serão ajustados e as pessoas empreendedoras apanharão os destroços das pessoas menos competentes.” Segundo o Presidente, Mellon “insistiu em que, quando as pessoas apanharem uma tempestade cerebral de inflação, a única forma de a tirarem do seu sangue será deixar cair a economia” e, “mesmo um pânico, não é de todo uma coisa má”. Como não se trata de descartar responsabilidades, dado que Hoover seguiu o conselho, a revelação só demonstra franqueza. Ora, já ninguém fala neste tom, mesmo que a solução liberal para as crises seja ainda esta, liquidar partes da economia. Nada se cria nem se perde, tudo se transforma.
Fica um cofre recheado para medidas avulsas e discricionárias, como prefere o Governo
Os liberais de antigamente eram assim, desabridos, snobes e violentos, pelo que o seu ressurgimento tem vindo a clarificar a política, mesmo que tal fidelidade de classe se misture necessariamente, como em Trump, com discursos e práticas afirmadamente autoritárias, o caminho que seguem todos os seus émulos. Há uma diferença, vai ter que convir, com os liberais de hoje, que têm vergonha do seu programa e até já aplaudem a possibilidade de saída do mercado liberalizado de gás (então a liberalização não era mesmo para fazer subir os preços e os lucros?) ou que se acotovelam para pedir subsídios ao Estado, temendo anunciar a “liquidação” de empresas e de trabalho.
A espiral inflacionista
Ora, as medidas que o Governo português anuncia, se bem que temperadas por donativos, como noutros países e por mais pequeninos que sejam, comungam desta filosofia liberal com um descaramento que só pode impressionar quem não sente este cheiro dos tempos. Toda a filosofia se baseia no pressuposto de que não se pode aumentar os salários (ou as pensões) de modo a compensar a inflação, dado que isso “alimentaria a espiral inflacionista”. Dito em bom português, o argumento é que para minorar a subida dos preços, que realmente existe, se deve impor uma redução do valor real dos rendimentos salariais, aproveitando assim para impor um imposto camuflado. Há várias formas de o conseguir, e o Governo mobilizou as duas principais: dar por certo que no ano de 2022 pouco se pode fazer (ficam os 125 euros para os não-pensionistas, menos de 1% de recuperação do salário médio nacional) e o contador vai a zeros em 1 de janeiro, prometendo-se que no próximo ano só se perderá o diferencial de inflação de 2022 para 2023; reduzir o aumento estrutural do valor das pensões para impor poupança futura através do malabarismo da antecipação do pagamento de meio mês de pensão neste outubro e mudando a lei das pensões. Chamar a isto “as famílias primeiro” é uma homenagem do vício à virtude.
Como não dá ponto sem nó, o Governo preanuncia que os funcionários públicos, escarnecidos em S. Bento como um ente político inexistente, receberão alguns 2% no próximo ano, depois de perderem cerca de 5% este ano, ficando então submetidos, como toda a gente, às vagas dos preços que se levantarem. E fica um cofre recheado para medidas avulsas e discricionárias, como prefere o Governo. Assim, se se perguntar ao primeiro-ministro se esta queda dos rendimentos, ou “liquidação”, é a boa política, ele poderá responder como Truss: “Sim, é justa.
Artigo publicado no jornal “Expresso” a 9 de setembro de 2022