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O que se passa com os serviços de urgência
Os serviços de urgências são locais difíceis para se trabalhar. A pressão, a carga de trabalho, a exposição a comportamentos violentos, ou a maior incidência burnout, contribuem para que não sejam locais atrativos para fixar profissionais. Há uma dimensão internacional do problema, independentemente do sistema de saúde, as urgências têm dificuldade em fixar profissionais, e sofrem de sobrelotação ou mesmo de encerramentos temporários.
Não há praticamente nenhum programa de governo para a saúde que não reconheça que há um problema nas urgências. No entanto, aqui estamos, com problemas semelhantes nos serviços de urgência ao longo dos últimos 40 anos.
O agravamento dos últimos meses é fácil de explicar. Uma pandemia muito dura para os profissionais de saúde, uma gestão de recursos humanos arcaica e sem os mínimos de consideração pelas expectativas dos profissionais, uma gestão sem autonomia e fundos a que se associa uma quebra real dos salários dos trabalhadores da saúde. Neste campo, os relatórios da OCDE são uma tristeza para Portugal, onde ocupamos o triste pódio de enfermeiros e médicos com maior queda nos salários na última década.
Face ao crescimento do setor privado, que sem pagar o que o profissional efetivamente merecia, mas apenas um pouco mais, facilmente atrai os profissionais de saúde que necessita. Tem igualmente a flexibilidade de prometer menos horas de urgência aos médicos, uma vez que a cada vez maior massa de médicos sem especialidade, alimentam a indústria dos médicos tarefeiros precários, sem expectativas de carreira, evolução profissional ou salarial a médio prazo.
A evolução do número de novos médicos não tem sido suficiente para colmatar o envelhecimento, relembrando que após os 50 anos, um médico pode não efetuar turnos da noite na urgência e, depois dos 55, pode pedir dispensa total do trabalho nas urgências. Nem para formar novos especialistas, atualmente, perto de dois em cada três médicos em atividade no SNS são internos. Esta situação é duplamente grave, pois estamos a destruir a capacidade formativa de novos especialistas a curto prazo. Infelizmente, sobre este grave problema, não ouvimos nem as preocupações, nem propostas de solução do atual bastonário da Ordem dos Médicos.
A gestão dos recursos humanos não se esgota nos médicos. Havia muito para fazer na classe de enfermagem, que tem o potencial para ser uma das soluções para este problema. A revisão de carreiras, salários e incentivos, tem de ser acompanhada por uma redefinição dos papéis sociais da saúde. Necessitamos que os enfermeiros e enfermeiras assumam mais competências, de forma a libertar médicos para as suas tarefas. Obviamente, as novas competências devem ser acompanhadas de formação e valorização salarial. Nada disto é novo, trata-se de um modelo em vigor na maioria dos países da OCDE. Por captura corporativa, Portugal permanece tristemente debaixo de um paradigma antiquado de prestação de cuidados. Está na hora de avançar e recuperar tempo perdido!
Tendemos a desvalorizar o impacto do encerramento de urgências, ou da sua sobrelotação, na saúde de todos nós. Não se trata de pequeno incómodo. Trata-se de uma barreira ao acesso a cuidados de saúde, que aumenta as desigualdades em saúde e aumenta a mortalidade na região afetada. Um estudo inglês, que procurou calcular o impacto do encerramento de serviços de urgência na mortalidade da população, descobriu um aumento de 2,5% dos óbitos na região. Outro estudo, também inglês, descobriu que após 4 horas de espera no serviço de urgência, o risco de mortalidade a 30 dias aumenta na medida do aumento do tempo de espera. Assim, 6 horas de espera aumentam o risco de mortalidade em 8%, 8 horas de espera aumentam em 10% e assim progressivamente. Não temos dados públicos tão detalhados sobre o tempo de espera das nossas urgências, mas sabemos que a proporção de utentes que esperam pelo menos 6 horas passou de 15% em 2017, para perto de 25% em 2021. É impossível não analisar estes dados, sem relacionar com as péssimas medidas de gestão dos recursos humanos. Os trabalhadores têm de ser respeitados e valorizados, não podem ser mais um número no Excel.
Resolver o problema das urgências não se esgota no serviço em si. Há um problema no hospital, que não consegue encaminhar doentes menos urgentes para a consulta externa ou hospital de dia, há um problema na comunidade que não tem outro recurso que não seja a urgência, e há um problema de políticas públicas que prefere sustentar este sistema ineficiente e que produz maus resultados em saúde, em vez de investir e dotar a comunidade e os hospitais dos recursos necessários para responder às necessidades em saúde da população.
Estou pouco confiante que o novo titular da pasta da saúde trará grandes novidades. Gerir o status quo, não levantar ondas, não chatear os interesses instalados no sector, tem sido a imagem de marca deste governo. Teremos de ser nós, trabalhadores, utentes, cidadãos preocupados com a saúde, a ter a exigente missão de pressionar para que sejam efetuadas as mudanças necessárias. Os problemas das urgências não podem continuar a ser ignorados.
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