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Blockchain: alternativa ou entretenimento?

Será a blockchain uma tecnologia com reais vantagens para as nossas vidas materiais ou um conjunto de novas dinâmicas sociais e económicas de bolha?

A informática e a programação são um dos palcos onde a capacidade do engenho humano se materializa em criar ferramentas que exponenciem a nossa qualidade de vida coletiva e individual e nesse caminho, criar atividades baseadas em conceitos novos permitidos pela tecnologia.

A tecnologia blockchain é uma das mais recentes promessas de entrada nesta panóplia de ferramentas que visa eliminar mais umas quantas adversidades das nossas vidas. Ou não.

Toda esta mediatização e especulação pode-se tornar numa mão cheia de nada. Vamos a isso.

De forma tecnicamente breve, a blockchain é uma base de dados. Mas esta base de dados tem as suas particularidades: a sua forma de encriptação é inovadora em relação às formas de encriptação convencionais. Cada utilizador guarda os seus registos num bloco com um número identificador único que é encriptado com base no bloco anterior. Esta codificação dinâmica de encriptação faz com que a violação desta base de dados seja mais difícil.

Há outra novidade no processo de armazenamento e encriptação de dados. Várias blockchains possibilitam que qualquer computador participe nesta rede de armazenamento e encriptação de dados das mesmas. Isto é, uma pessoa pode disponibilizar a sua máquina para este fim mantendo o seu computador ligado à internet a desempenhar tarefas de encriptação e armazenamento. Leitores e leitoras com curiosidade por este tema já devem ter visto o termo “mineração” ser utilizado no mundo da blockchain. É a esta ação que se refere.

É esta arquitetura de base de dados com blocos de informação guardados em corrente (blockchain) que permite pensar em novas composições de negócios e processos.

Este conceito tem-se fixado numa ideia de integridade de dados garantida, na descentralização das suas operações e na inevitabilidade da digitalização nestes moldes de ramos da economia desde o sistema financeiro até ao mundo da arte. Mas são precisamente estes três pontos que me fazem pensar nas contradições, incertezas e deturpações sociais que esta revolução cibernética alberga: confiança, descentralização e digitalização.

Começo por falar da confiança com um exercício tão simples como a compra de um e-book ou de um livro físico.

O lóbi da blockchain tem vendido a ideia de que, com esta tecnologia, essa confiança é garantida pelo sistema. Ora vejamos.

Quando uma pessoa compra um e-book ou um livro através de um site ou uma loja, confia nos mesmos por estes serem de vendedoras com reputação, por conhecer alguém que já lá fez compras com sucesso ou outros fatores que fazem aquele espaço de venda parecer credível.

A teoria, frequentemente justificada com factos técnicos, diz-nos que através da utilização de um contrato inteligente1 tornaria confiável a compra de um e-book. O comprador deposita uma determinada quantidade de dinheiro regular na blockchain onde esta loja online está alocada e de seguida adquire o e-book através de uma transação 100% garantida pelo algoritmo deste site dApp2.

Numa compra de um livro em blockchain prevê-se que haveria a necessidade da submissão do livro para envio no sistema por parte de um trabalhador ou de um robot de armazém e do processamento de todo o restante caminho que, por menos humanos que necessitasse, teria sempre na entidade que desenvolveu o sistema a autoria da garantia de serviço e não existência de erros desta transação.

Não esquecer que para garantir a existência de qualquer processo baseado em blockchain são precisos programadores e consequentemente empresas ou outras entidades que desenvolvem e mantêm a integridade e atualização dos sistemas. A confiança está depositada aqui, tal como acontece hoje com bancos, sistemas informáticos de transações financeiras e nas ferramentas dos vendedores e prestadores de serviços.

Isto leva ao meu segundo ponto de análise: descentralização.

Contrato inteligente + possibilidade da blockchain operar em máquinas espalhadas pelo mundo + código disponível para consulta aberta = descentralização? Certo. O problema é que esta descentralização não garante a integridade das operações.

Cada vez mais projetos cripto, especialmente criptomoedas, procuram sistemas de processamento centralizados e estratégias de desenvolvimento mais certeiras através da forma convencional pois estes moldes garantem mais estabilidade e controlo dos seus projetos.

Mais uma vez, o desenvolvimento desta tecnologia está dependente de grandes investimentos motivados por interesses comerciais que neste momento se materializam em bolhas de especulação e esta tem a particularidade de consumir uma quantidade obscena de energia enquanto as empresas gigantes de tecnologia esfregam as mãos. A ideia democrática da descentralização do sistema financeiro vai por água abaixo ao percebermos que, afinal, as criptomoedas não estão a criar um sistema alternativo aos bancos centrais, estão apenas a transferi-lo para o poder privado dos gigantes da tecnologia.

Não posso deixar de achar intrigante a forma como todo este criptomundo se tem moldado. Gira em volta da valorização de cada criptoprojeto. Seja a venda de criptomoedas que representam uma parte de algo da economia real como uma ação de uma empresa ou a venda de NFTs3 de gatinhos num website destinado à compra e troca de imagens de avatares de gatinhos, como as velhinhas cadernetas de cromos.

Os NFTs são parte integrante do terceiro e último ponto que quero falar: a digitalização (ou virtualização).

A blockchain promete também todo um protagonismo em espaços virtuais como o metaverso. A forma de bolha económica em que funcionam os projetos cripto são super compatíveis com este conceito. Imagine-se: o seu avatar do metaverso e os objetos que ele "possui" são NFTs, o dinheiro que utiliza para poder comprar e-books ou todo o tipo de serviço virtual que se possa inventar é a criptomoeda desse metaverso, que antes de estar na sua cripto carteira foi trocada por euros ganhos com o seu trabalho na economia real.

Tudo isto parece um video-jogo muito interessante para quem preferir uma cripto realidade alternativa a uma mesa cheia de amigos… até se reunirem os fatores necessários para que estes espaços moldem a cultura, o consumo de informação e o pensamento político dos seus jogadores.

A meu ver, com as tendenciosas e sensatas preocupações com os problemas do mundo real longe de ter uma solução, economistas enfrentam hoje o desafio de regular uma economia paralela que sociólogos irão incansávelmente analisar amanhã.

Será a blockchain uma tecnologia com reais vantagens para as nossas vidas materiais ou um conjunto de novas dinâmicas sociais e económicas de bolha?

Notas:

1 Um contrato inteligente é um conjunto de configurações digitais que são despoletadas através de uma transação da blockchain. No exemplo acima, o contrato inteligente é o conjunto de ações que se sucedem após a compra de um e-book. Este fator faz parte do pacote de venda de uma ideia de descentralização de operações proporcionado pela blockchain.

2 Uma dApp (decentralized App) é um site, aplicação móvel ou plataforma digital que funciona numa lógica baseada em blockchain.

3 Um NFT (non-fungible token) é um elemento digital inserido numa blockchain que contém um número identificador único encriptado com a tecnologia e, dentro da sua bolha digital, é único. Ao vender ou trocar um NFT, esta propriedade digital é transferida para o seu novo dono.

Sobre o/a autor(a)

Membro da Concelhia de Loures do Bloco de Esquerda e dos Jovens do Bloco
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