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O Ministério da Saúde tornou-se Ministério do Faz-de-Conta

A cada novo remendo, a cada novo anúncio sem qualquer efeito ou eficácia, a cada nova medida que, afinal, não se aplica, a crise aprofunda-se.

A situação do Serviço Nacional de Saúde é grave e está a deteriorar-se rapidamente.

Em dois anos, duplicou o número de utentes sem médico de família. São agora quase 1,4 milhões. Os hospitais estão com enormes dificuldades para garantir o funcionamento pleno de vários serviços, com destaque para as urgências, cujos encerramentos passaram a ser quotidianos. Os profissionais acusam fadiga e também desilusão e não, não é só o cansaço acumulado da resposta à covid, é o facto de não serem minimamente valorizados pelo Governo mesmo depois de terem aguentado uma pandemia.

A situação é complicada e só pode piorar quando existe um Ministério da Saúde que passou a ter como objetivo principal a gestão mediática dos casos e não a resolução dos problemas.

A cada novo remendo, a cada novo anúncio sem qualquer efeito ou eficácia, a cada nova medida que, afinal, não se aplica, a crise aprofunda-se. Mas é já só isso que o Ministério da Saúde tem para oferecer: fazer de conta que está a fazer.

Quantas vezes se anunciou autonomia para as instituições do SNS? Ia ser em 2019, depois no Orçamento para 2022, afinal é com o Estatuto do SNS... Enquanto isso, os administradores hospitalares continuam a enfrentar uma cascata de autorizações para poder contratar.

Há ainda a questão da dedicação plena que o Governo quer fazer de conta que é exclusividade, mas não passa de um regime de incentivos por produtividade onde, afinal, os profissionais nem têm de estar em exclusividade.

Episódio paradigmático do faz-de-conta ministerial é o do triplo anúncio sobre a crise nas urgências de obstetrícia: lançamento de um concurso para contratação de recém-especialistas; “funcionamento mais articulado, antecipado e organizado das urgências em rede”; “acautelamento de questões remuneratórias associadas”.

O que significou isto, na realidade?

Os concursos anunciados já estavam previstos, mas, como não foram tomadas medidas para aumentar a retenção dos recém-especialistas, continuam a ficar desertos. Já se sabe o resultado para Medicina Geral e Familiar: quase 40% das vagas por ocupar. Infelizmente, não é de esperar que o resultado seja diferente nas especialidades hospitalares.

A tal articulação das urgências resultou até agora na divulgação, no site do SNS, das urgências encerradas em cada momento. O acesso à informação pode ser importante, mas mais importante é o acesso à saúde. E, para isso, é preciso ter hospitais a funcionar em pleno e não páginas de internet onde se informa que eles não estão a funcionar.

Já o anúncio sobre questões remuneratórias foi triunfalista – os hospitais poderiam pagar até 70€ por hora extraordinária aos seus médicos –, mas de aplicação impossível. Na expressão do presidente do Hospital de São João: “I-na-pli-cá-vel”.

Porquê inaplicável? Porque o decreto que diz que os hospitais podem aumentar o pagamento por hora extra diz também que a despesa com trabalho suplementar não pode ser maior do que em 2019. Isto quando o volume de horas extraordinárias aumentou brutalmente nos últimos dois anos e quando se sabe que, em 2022, continuará a aumentar. Fernando Medina, depois de ter dito que o dinheiro para o SNS não seria problema, fechou a torneira ao SNS enquanto acumula um excedente de 1100 M€ no primeiro semestre.

Se é de respostas estruturais que se anda à procura, esta não pode ficar de fora: é preciso um Governo que sirva o SNS e não que se sirva do SNS

Está na hora de refazer o sketch. Com este decreto é qualquer coisa como: “É permitido fazer? É. Então, pode-se fazer? Não. Mas podem pagar mais? Podem. E vão pagar? Não, que não têm dinheiro para isso.”

A situação é complicada, mas as soluções não são tão difíceis assim. Algumas que o Bloco de Esquerda tem apresentado: revisão e melhoria de carreiras, autonomia das instituições, exclusividade com incentivos associados, utilização do orçamento do SNS para investimento em equipamentos e profissionais e não para convenções e prestadores de serviços… Tudo isso é rejeitado pelo PS.

Problema é que, enquanto o Governo faz-de-conta que faz, os serviços continuam a encerrar, os profissionais e os utentes desacreditam. Se é de respostas estruturais que se anda à procura, esta não pode ficar de fora: é preciso um Governo que sirva o SNS e não que se sirva do SNS.

Artigo publicado no jornal “Público” a 1 de agosto de 2022

Sobre o/a autor(a)

Doutorando na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e investigador do trabalho através das plataformas digitais. Dirigente do Bloco de Esquerda
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