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O Sri Lanka é já aqui ao lado

Há, neste mundo do fim da história, quem levante uma força desmedida, o que aumenta a fragilidade do sistema global. São os gigantes que dominam a economia.

Passaram 30 anos sobre a publicação de “O Fim da História e o Último Homem”, de Fukuyama, e o autor multiplicou-se em explicações particularmente implausíveis sobre o slogan publicitário que fez o sucesso do livro. Não era fácil: depois da vaga de entusiasmo com a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, os vencedores consolaram-se com a certeza da eternidade liberal, mas o festejo foi curto. Logo depois veio o 11 de setembro, a guerra do Afeganistão e a do Iraque, e nem a paz americana resistiu ao terrorismo dos seus próprios aliados, nem a guerra infinita fez a lei. Na década seguinte Trump venceu, anunciando-se uma vaga populista que entretanto mal adormeceu e promete renascer. O misterioso “último homem” anda malparado.

Um tempo triste, escrevia Fukuyama

Fukuyama foi, de algum modo, vítima do seu próprio êxito, e o livro foi mais citado pelo título do que pela constatação de alguma angústia intestina. As últimas linhas revelavam mesmo alguma nostalgia ou até medo, tendo sido esquecidas: “O fim da história será um tempo muito triste. A luta pelo reconhecimento, a vontade de arriscar a própria vida por um objetivo puramente abstrato, a luta ideológica mundial que apelava à ousadia, coragem, imaginação e idealismo, será substituída pelo cálculo económico, a resolução infindável de problemas técnicos, preocupações ambientais e a satisfação de exigências sofisticadas do consumidor (...). No período pós-histórico, não haverá nem arte nem filosofia, só o cuidado perpétuo do museu da história humana.” Convenha-se que este retrato da vitória liberal (o “cálculo económico”) é assaz constrangedor.

A cartografia deste fim da história é também assustadora. Aliás, a atualidade é sempre impiedosa para a noção de hegemonia perpétua. A bancarrota do Sri Lanka reduziu a importação de bens essenciais, ainda antes da guerra na Ucrânia, embora o posterior encarecimento dos alimentos agravasse a crise social, desencadeando a revolta popular. No Peru, os protestos não nascem dos preços dos produtos do Mar Negro e o desespero é comparável. No Paquistão, com a sua crise cambial, ou na Turquia, próxima da hiperinflação, os caminhos vão dar ao mesmo. Na Europa, ainda antes da crise energética na sequência da invasão da Ucrânia, já estavam ameaçadas as maiorias de governo no Reino Unido, França e Itália, fosse pela desautorização por pecadilhos vários, fosse pelas condições estruturais da fragmentação do mapa político, e em nenhum destes países há um horizonte de liderança que tranquilize. Na Alemanha não será diferente: registando o primeiro défice comercial em 30 anos e sendo a principal vítima das retaliações de Moscovo, a economia europeia mais poderosa está à beira da recessão, veremos que consequências são geradas numa coligação em espantosa perda de autoridade.

O “último homem” volta a atacar

Se fosse só desarranjo do mundo e o regresso dos sempre reprimidos poderes regionais quando a batuta da superpotência clamava pela imutabilidade... Há também, neste mundo do fim da história, quem levante uma força desmedida, o que, ao contrário do que supunha Fukuyama, aumenta a fragilidade do sistema global. São os gigantes que dominam a economia. Dominam a agenda política, a começar pelo santo dos santos, o território do sistema fiscal: de 1985 a 2018, a taxa média dos impostos empresariais baixou nos países da OCDE de 49% para 24%; Trump foi mais longe, no caso dos Estados Unidos reduziu essa taxa de 35% para 21%, tendo Biden prometido repor a norma anterior, embora não o tenha conseguido, se é que sequer o tentou. Essas grandes empresas, a finança antes de tudo, têm artes de beneficiar mesmo da emergência e, como o “Financial Times” constatava recentemente, o BCE é agora obrigado a responder a um problema que seria inconcebível para o comum dos mortais: como evitar que os bancos realizem lucros extraordinários ao depositar no banco central, a juros agora acrescidos, algum do capital que receberam de empréstimo a juro baixo durante a pandemia, quando foram distribuídos 2,2 biliões de euros para reanimar a economia (e a finança ficou com parte desse valor, não houve investimento). Com a operação, calcula a equipa de Lagarde, esses bancos poderão embolsar entre 4 e 24 mil milhões de lucros suplementares até final de 2024, por um simples gesto de computador.

O BCE é agora obrigado a evitar que os bancos realizem lucros extraordinários ao depositar no banco central algum do capital que receberam de empréstimo a juro baixo durante a pandemia

Acerca desse poder, o nosso país tem dado abundantes provas de facilidade. Em meados de 2022, a auditoria do Tribunal de Contas constatou sem surpresa que a administração do Novo Banco tudo fez para se aproveitar dos bolsos do Estado, ignorando estrategicamente as regras básicas de gestão. E, se verificarmos o fundamento do caos nos aeroportos, temos o mesmo retrato de escolhas que se amontoaram gerando a crise, com a concessão ‘troikista’ da ANA por 50 anos, mais o negócio misterioso da venda da Groundforce com um subsídio ao comprador e o seu desinvestimento, a que se soma agora o efeito dominó da falta de pessoal em todas as grandes companhias aéreas. Como foi notório, é nesse emaranhado que a Vinci, que detém a ANA, veio dizer, pela palavra de um ex-ministro e agora chefe da sucursal, que resolveria o problema do novo aeroporto com mais 25 anos de concessão, só até 2087 e estamos conversados. O “último homem” é o mais sagaz dos calculistas, se bem que no Sri Lanka tenha fugido do palácio.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 15 de julho de 2022

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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