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Para muites, essa foi a maior surpresa

Em vez de alinhar pela perspetiva do progresso humano, Pacheco Pereira cometeu um erro. Ao colocar-se na posição de vítima em heróico ato de resistência face a uma “fúria censória”, retirou-se do debate pelo lado de quem substitui a dialética pela afirmação do preconceito/de uma verdade absoluta e inquestionável.

José Pacheco Pereira publicou neste jornal uma crónica intitulada Porque é que “todes” não é todos, nem todas? Nem todas as polémicas são boas, mas há umas mais importantes do que outras.

Começando pelo mais caricato, ainda que não seja o mais grave, Pacheco Pereira ironiza que não sabe muito bem quem é que lhe “'atribuiu’ o sexo biológico, a não ser a biologia ou Nosso Senhor”. Não sabemos exatamente o que o historiador esconde atrás de tamanho sarcasmo, mas não lhe será estranha a famosa frase de Simone de Beauvoir “não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres, nem as teses que posteriormente contestaram a ideia de que o sexo é imutável. A partir do pensamento de feministas como Judith Butler, as teorias de género complexificaram a relação entre o social e o biológico na construção de identidades.

Neste aspeto registo uma incompreensão que não condiz com a exposição pública de um debate cuja base teórica tem mais de duas décadas. Nele encontram-se várias possibilidades teóricas, como a de “não se trata de dizer que é tudo linguagem, negando a realidade do corpo, mas de dizer que também a anatomia tem uma história e não é separável de uma ordem do discurso” (O género e o sexo em sentido extra-moral, António Guerreiro, PÚBLICO, 13/10/2017)

Saindo dessa questão concreta e contornando outras igualmente complexas, como a da linguagem, é possível sintetizar o argumento de Pacheco Pereira numa ideia: o “abuso” sobre as identidades. Aparentemente, Pacheco Pereira acha que são demais e isso incomoda-o. Para o provar não se coíbe de mencionar algumas absolutamente irrelevantes, mas, pelo caminho, arrasta tudo.

O movimento histórico antirracista, anticolonial, feminista e LGBTQIA+ (não é assim tão difícil) que permitiu afirmar grupos explorados e oprimidos pela sociedade capitalista, racista e patriarcal, foi uma luta pelo direito à existência, à visibilidade, à dignidade e à vida. Essa existência precisa de reivindicar uma identidade e o abecedário foi ampliado não para chatear Pacheco Pereira, mas para reconhecer identidades em luta (poderia, como ilustração, sugerir-lhe a série When We Rise, sem medo de ser acusada de simpatias com o imperialismo norte-americano).

O abecedário foi ampliado não para chatear Pacheco Pereira, mas para reconhecer identidades em luta

A amplitude desse processo merece debate e não um arrastão de identidades. O que é que esse tipo de negação pretende servir? Só a própria afirmação de identidade do autor. O lamento “todas estas afirmações de identidade [as suas próprias], que nunca na vida me passou pela cabeça poder fazer, diminuem-me social e culturalmente”, tem dois aspetos dignos de nota. O primeiro é a desvalorização da autoafirmação como elemento essencial de determinação da identidade (por oposição a qualquer uma que nos seja atribuída). O segundo é a consciência que Pacheco Pereira tem sobre o seu lugar no mundo e o privilégio de quem nunca teve de afirmar a sua identidade como forma de (r)esistência.

Por isso, não, a publicidade não está a impor identidades “alternativas” a ninguém. Quando muito, a publicidade serviu em exclusivo a hegemonia da identidade com a qual Pacheco Pereira se identifica, e talvez isso seja a chave para descodificar a sua posição.

Ainda assim, se estas explicações não servissem o quadro moral de Pacheco Pereira, restar-lhe-ia sempre uma posição enquadrada pelos Direitos Humanos. Pela ideia de que, tal como a discriminação (e a violência) não se contém apenas nas características sexuais binárias (homem e mulher), também o princípio da não discriminação não pode ser contido por elas. Pelo peso histórico da escravatura na palavra “preto”, mesmo que não chegasse para compreender a investigação histórica e social sobre a branquitude — não há um passado de opressão genocida e racista atrás da palavra “branquela”, e essa evidência é a faca cravada no coração do argumento de Pacheco Pereira.

Em vez de alinhar pela perspetiva do progresso humano, Pacheco Pereira cometeu um erro. Ao colocar-se na posição de vítima em heróico ato de resistência face a uma “fúria censória”, retirou-se do debate pelo lado de quem substitui a dialética pela afirmação do preconceito/de uma verdade absoluta e inquestionável. No seu texto não há espaço para a curiosidade intelectual nem sinal da mais fugaz tentativa de compreensão da realidade social e das suas transformações. Sobra apenas a acusação estéril de quem se sente atacado sem ter inimigo.

Aparentemente, alguém que não quer o pensamento único incomoda-se com as outras expressões, mesmo que algumas lhe sejam imperceptíveis de tão distantes. Para muites, essa foi a maior surpresa.

Artigo publicado no jornal “Público” a 15 de julho de 2022

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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