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Editorial: Já está na altura de dignificar o trabalho médico?

Horas extra, precariedade, perda de salário e uma pandemia. Numa profissão que defende a humanização dos cuidados de saúde, não é compreensível que quem presta cuidados o faça sob condições desumanas. Por Tânia Russo, médica no Hospital Amadora-Sintra, dirigente sindical e deputada municipal em Sintra

A pandemia por SARS-CoV-2 tem sido uma prova dura para o Serviço Nacional de Saúde e para os seus profissionais. Apesar do esforço exigido e do cenário de incerteza e de risco, os médicos e médicas do SNS nunca deixaram de dizer presente. Se não é este o momento de finalmente reconhecer a importância destas trabalhadoras e trabalhadores na vida das pessoas e do país e de lhes conferir não um privilégio, mas o mais justo direito a salários e condições de trabalho dignas, quando será?

A exigência da pandemia sobrepôs-se a anos de destruição da carreira médica, de congelamento das progressões e de salários, de degradação das condições de trabalho, da precariedade de contratos de prestação de serviços para medicina à tarefa e de um avolumar inexequível de horas extraordinárias, que em muitos casos chegam a equivaler a três ou quatro meses de trabalho extra. Os sucessivos ataques aos trabalhadores médicos e trabalhadoras médicas levou à perda de poder de compra de 17% desde 2010.

Em resultado desta sangria, temos assistido ao abandono massivo do SNS pelos profissionais e à perda de capacidade deste para as instituições privadas. E isso não é uma escolha dos trabalhadores. É sim uma escolha política, a que os sucessivos governos têm dado continuidade. Os problemas e a deliberada delapidação do SNS não surgiram com a pandemia: avolumaram-se durante mais de uma década e traduzem-se agora em mais de 1,1 milhões de pessoas sem médico de família, em urgências sobrelotadas e com mais de 10 horas de espera e em 22 milhões de horas extra no ano passado. A despesa estimada do SNS com horas extra dos médicos em 2021 daria para contratar mais de 3800 médicos a tempo inteiro na base da carreira.

A falta de vontade política para resolver as doenças crónicas que têm sido infligidas ao SNS não resulta de inércia nem de falta de dinheiro – é o concretizar progressivo de uma agenda política e ideológica de entrega deliberada do filão da saúde aos privados, à custa de um serviço público, universal e equitativo.

Mesmo nas instituições privadas, os direitos laborais são constantemente atropelados. O falso trabalho independente e a contratação através de microempresa do próprio médico ou médica são uma imposição da entidade patronal como forma de se livrar dos encargos com a segurança social, que confere direitos aos trabalhadores, como a proteção na doença e o apoio na parentalidade. E é impossível esquecer a atitude parasitária dos privados, que encerraram portas no despontar da pandemia, mandando centenas de trabalhadores e trabalhadoras para um lay-off financiado pelo Estado, numa altura em que o país mais precisava do seu contributo.

Os sindicatos médicos têm levado as suas reivindicações ao Ministério da Saúde, mas do outro lado têm encontrado indisponibilidade para a negociação. Esta intransigência acabou por empurrar para medidas de luta mais duras, com a realização nos últimos cinco anos de três greves nacionais, uma greve regional e várias greves setoriais, incluindo do SAMS. Só o sentido cívico e de responsabilidade para com os cidadãos e as cidadãs neste duro cenário de pandemia tem impedido as médicas e médicos de encetarem mais formas de luta nos últimos dois anos.  Neste novo ciclo político, a maioria absoluta faz antever uma postura ainda menos dialogante, que só o esforço conjunto e a mobilização de todos e todas, profissionais, utentes, sindicatos e sociedade civil, podem quebrar.

Numa profissão que defende a humanização dos cuidados de saúde, não é compreensível que quem presta cuidados o faça sob condições desumanas. É necessário aumentar salários, reforçar equipas, reduzir a penosidade do trabalho em urgência, criar condições para a fixação de médicos de família e médicos hospitalares nas regiões carenciadas. É urgente recuperar e respeitar a carreira médica e valorizar todos os profissionais de saúde, que são o pilar do SNS. Melhorar as condições de trabalho é lutar por um SNS que é de todos e de todas.

Sobre o/a autor(a)

Médica e dirigente do Sindicato dos Médicos da Zona Sul
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Esquerda Saúde 2

Revista Esquerda Saúde nº2

31 de May

A edição de junho de 2022 já está disponível online e traz em destaque um dossier sobre investigação em saúde. Leia aqui a revista em formato pdf.

Editorial: Já está na altura de dignificar o trabalho médico?

31 de May

Horas extra, precariedade, perda de salário e uma pandemia. Numa profissão que defende a humanização dos cuidados de saúde, não é compreensível que quem presta cuidados o faça sob condições desumanas. Por Tânia Russo, médica no Hospital Amadora-Sintra, dirigente sindical e deputada municipal em Sintra

EUA: O triunfo do conservadorismo contra as decisões das mulheres

31 de May

O país encontra-se dividido entre os estados que permitem livremente o acesso ao aborto nas condições da lei (até às 24 semanas de gestação) aceitando mesmo mulheres de outros estados, e os que reduzem drasticamente as condições da lei, com sistemáticas represálias em relação aos profissionais de saúde que colaboram na prática de aborto.  Por Ana Campos, médica obstetra

 

“Das pessoas trans que recorreram ao SNS, mais de metade sofreu discriminação”

31 de May

Entrevista a Jo Rodrigues, presidente da Anémona, uma associação de profissionais de saúde e seus aliados criada para aproximar os serviços de saúde das pessoas transgénero e não-binárias e combater a transfobia.

 

Hayek, Pinochet e os social-liberais entram num bar…

31 de May

No Chile, a ‘reforma’ liberal é cara e ineficiente. Custa 7% do salário aos utentes, canaliza 50% dos recursos para 20% da população e os ganhos em saúde são alcançados pela resposta pública e não pela privada. Por Moisés Ferreira, dirigente do Bloco de Esquerda

O negócio vai bem (a Saúde nem por isso)

31 de May

A faturação e os lucros dos grupos privados da saúde não pára de aumentar. Estes lucros crescentes não impedem que estas empresas sejam conhecidas por más práticas laborais. Por Maria Ribeiro, enfermeira emigrada na Bélgica

 

Inovação em Saúde: Importância da investigação clínica e de translação

31 de May

A investigação clínica e de translação visa melhorar os cuidados de saúde e os prognósticos dos pacientes. É essencial para a melhoria do bem-estar das populações e deve estar ao alcance de todos. Por Maria João Carvalho, Investigadora do Instituto de Biomedicina, Departamento de Ciências Médicas da Universidade de Aveiro.

 

O papel do mercado no desenvolvimento de vacinas: Fonte de avanços ou força de bloqueios?

31 de May

Parto para esta reflexão com base em dois exemplos muito concretos: o das vacinas de mRNA contra a COVID-19, que todos conhecemos, e o de uma vacina contra a malária, o principal foco de vários anos da minha investigação científica. Por Miguel Prudêncio, investigador principal do Instituto de Medicina molecular

Quem deve financiar a ciência?

31 de May

Sem financiamento público, a investigação básica não fica assegurada. Sendo esta  investigação fundamental para o avanço do conhecimento, mesmo a investigação mais  aplicada fica em sérios riscos a longo-prazo sem um sério investimento a montante.  Por Ana Isabel Silva, investigadora em Ciências da Saúde no i3S.

Eutanásia: Uma lei contra a prepotência

31 de May

As iniciativas dos partidos proponentes da despenalização, já entregues ou anunciadas, mostram que a Assembleia da República manterá o registo de responsabilidade e de tolerância que imprimiu a todo o processo anterior. Por José Manuel Pureza, dirigente do Bloco de Esquerda.

Cuidados paliativos: Direitos humanos em fim de vida

31 de May

É prioritário investir na formação diferenciada em cuidados paliativos dos profissionais de saúde e criar novas unidades de apoio ao internamento paliativo na comunidade que permitam o controlo de sintomas e prevenção de complicações, aliviando o sofrimento, permitindo assim cuidados personalizados e de proximidade. Por Gisela Almeida, Enfermeira Especialista, Instituto Português de Oncologia, Coimbra

 

Acolher e cuidar dos refugiados

31 de May

Embora a lei determine que o refugiado tem direito a cuidados de saúde no SNS, quem está nos serviços de saúde conhece bem que nem sempre são dadas as respostas céleres e adequadas aos refugiados que a eles recorrem. Por Sónia Pinto, enfermeira de família.

Açores: Para os profissionais de saúde, uma salva de… precariedade!

31 de May

É verdade que o reforço de meios humanos foi necessário para o combate à pandemia, mas também o é para o normal funcionamento e recuperação de toda a atividade assistencial. Por Jéssica Pacheco, enfermeira, Açores.

Transformar o SNS, a agenda de um encontro à esquerda

31 de May

Realizou-se a 21 de Maio o Encontro Nacional Sobre Saúde do Bloco de Esquerda, em Lisboa. Foram vários os contributos para o debate e destacamos aqui algumas breves passagens de cada um.

Revisão da literatura – a legalização da canábis aumenta o consumo entre os jovens?

31 de May

Uruguai e Canadá legalizaram a canábis recretiva em 2013 e 2018, respetivamente. Dois estudos recentes sobre o consumo recreativo oferecem-nos uma visão sobre o que pode ser a realidade após a legalização. Por Bruno Maia, médico.